Episódios

  • Emergência por Odilon Esteves.

    Quem faz um poema abre uma janela.

     Respira, tu que estás numa cela abafada,

     esse ar que entra por ela.

     Por isso é que os poemas têm ritmo 

    Para que possas profundamente respirar.  

    Quem faz um poema salva um afogado.

    Autor: Mário Quintana.

    Assista este poema narrado pelo Odilon Esteves também no Youtube pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=SGxpH2xtEUk

  • Fragmento de Vida e Proezas por Sérgio Gomide

    " [...] Lembrei-me de certa manhã, num Pinheiro encontrei um casulo, no instante em que a borboleta dentro dele rompia a casca e se preparava para surgir. Eu esperava, esperava, estava demorando e eu tinha pressa. Então me inclinei sobre ela e comecei a aquecê-lá com o meu hálito, impacientemente eu aquecia e um milagre começou a se desenrolar diante de mim com um ritmo veloz e antinatural, a casca abriu-se completamente e a borboleta surgiu. Jamais esquecerei o meu horror, suas asas ficaram frisadas, não se desdobraram, todo seu corpinho esforçava-se para desenrolá-las, mas não conseguia.

    Com o meu hálito, eu também me esforçava para ajudá-la, em vão, ela necessitava de um paciente amadurecimento e desdobramento ao sol, mas agora já era tarde. Meu sopro havia forçado a borboleta a surgir antes da hora, enrugada e temporam. Saiu imatura, moveu-se desesperada e logo depois morreu na palma da minha mão. Acho que esse penugento corpo morto da Borboleta é o maior peso que carrego na consciência. Eu compreendi então em profundidade, é pecado mortal infringir as leis eternas, temos o dever de seguir o ritmo perpétuo com confiança.

    Para assimilar calmamente essa reflexão de ano novo empolerei-me em um Rochedo. Aí se eu pudesse, dizia para mim mesmo, neste novo ano ritmar minha vida assim: sem paciência histéricas. Se essa pequena borboleta que eu matei porque tive demasiada pressa para fazer viver, voasse sempre diante de mim mostrando-me o meu caminho e assim uma borboleta que morreu precocemente talvez ajudasse uma irmã, uma borboleta humana a não se apressar e a conseguir desenrolar as asas em ritmo lento [...]"

    Autor: Alexis Zorbas

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  • Cântico Negro por Odilon Esteves.

    "Vem por aqui" — dizem-me alguns com olhos doces,

    Estendendo-me os braços, e seguros

    De que seria bom que eu os ouvisse

    Quando me dizem: "vem por aqui!"

    Eu olho-os com olhos lassos,

    (Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)

    E cruzo os braços,

    E nunca vou por ali...

    A minha glória é esta:

    Criar desumanidade!

    Não acompanhar ninguém.

    — Que eu vivo com o mesmo sem-vontade

    Com que rasguei o ventre a minha Mãe.

    Não, não vou por aí! Só vou por onde

    Me levam meus próprios passos...

    Se ao que busco saber nenhum de vós responde,

    Por que me repetis: "vem por aqui!"?

    Prefiro escorregar nos becos lamacentos,

    Redemoinhar aos ventos,

    Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,

    A ir por aí...

    Se vim ao mundo, foi

    Só para desflorar florestas virgens,

    E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!

    O mais que faço não vale nada.

    Como, pois, sereis vós

    Que me dareis impulsos, ferramentas, e coragem

    Para eu derrubar os meus obstáculos?...

    Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,

    E vós amais o que é fácil!

    Eu amo o Longe e a Miragem,

    Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

    Ide! Tendes estradas,

    Tendes jardins, tendes canteiros,

    Tendes pátrias, tendes tectos,

    E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.

    Eu tenho a minha Loucura!

    Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,

    E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

    Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.

    Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;

    Mas eu, que nunca princípio nem acabo,

    Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

    Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!

    Ninguém me peça definições!

    Ninguém me diga: "vem por aqui"!

    A minha vida é um vendaval que se soltou.

    É uma onda que se alevantou.

    É um átomo a mais que se animou...

    Não sei para onde vou,

    Não sei para onde vou

    - Sei que não vou por aí!

    Autor: José Régio.

    Assista este poema narrado pelo Odilon Esteves também no Youtube pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=7ZA4mfovFOM

  • Ismália por Alexsandre da Silva Carvalho.

    Quando Ismália enlouqueceu
    Pôs-se na torre a sonhar
    Viu uma lua no céu
    Viu outra lua no mar

    No sonho em que se perdeu
    Banhou-se toda em luar
    Queria subir ao céu
    Queria descer ao mar

    E num desvario seu
    Na torre pôs-se a cantar
    Estava perto do céu
    Estava longe do mar

    E como um anjo pendeu
    As asas para voar
    Queria a lua do céu
    Queria a lua do mar

    As asas que Deus lhe deu
    Ruflaram de par em par
    Sua alma subiu ao céu
    Seu corpo desceu ao mar

    Autor: Alphonsus de Guimarães.

  • Elegia por Odilon Esteves.

    Um dia, amor, tudo o que existe agora,

    Tudo o que forma o nosso grande orgulho,

    A pureza e o esplendor de nossas almas,

    Terá morrido, sem deixar lembrança,

    Na velha terra indiferente aos homens.

    Nada do que hoje nos parece eterno

    Terá ficado do naufrágio imenso.

    Esquecidas de nós, as novas almas

    Levantarão para as estrelas mudas

    O milagre feliz dos novos sonhos,

    Sem talvez meditar que a terra outrora

    Vira prodígios e deslumbramentos

    Semelhantes aos seus, sob um céu puro.

    Uma névoa de pó terá coberto

    As cidades vaidosas, onde os homens

    Hoje, lutando, desvairados, sofrem.

    E apenas raros monumentos tristes

    Lembrarão, no candor da branca pedra,

    A fronte sacratíssima de um sábio,

    De um herói, de um guerreiro, de um poeta,

    Que a glória cinja com a divina palma.

    Novos deuses, em templos majestosos,

    Receberão, no plácido silêncio,

    O murmúrio das preces comovidas,

    O perfumado fumo das oblatas

    E o amor das multidões...

    Ah! nesse tempo

    Eu terei recebido dos destinos

    O bem do esquecimento imperturbável...

    Deste homem que hoje sou - das minhas crenças,

    Dos meus sonhos de amor, dos meus desejos,

    Das minhas ambições mais rutilantes -

    Nada mais restará, nada, na terra!

    Mas, quem sabe? Talvez, um dia, um homem,

    Amigo das pesquisas minuciosas,

    Visite longamente as bibliotecas,

    Onde durmam os livros seculares,

    Que as traças lentas vão destruindo a custo.

    E esse homem, cheio de um amor antigo,

    Curioso do viver das eras mortas,

    Talvez encontre, entre outros livros velhos,

    Estes versos que escrevo, e em que minha alma

    Fala à tua alma em longas confidências.

    E então, meu lindo amor, como evadidos

    De um sepulcro, nós dois ressurgiremos

    Aos olhos caridosos desse amigo,

    Vindos das densas sombras do passado.

    Talvez...

    Seremos belos!

    Nossa fronte,

    Há de doirá-la a mesma juventude,

    Que hoje nos cerca de um clarão sagrado!

    Haverá nos teus lábios esse mesmo

    Beijo vibrante que me trazes hoje!

    E nos olhos terás o mesmo encanto

    Que neles me seduz e prende agora!

    Sim: no milagre desse instante ardente,

    Nessa ressurreição maravilhosa,

    Nós brilharemos juntos, aureolados

    De um novo amor e de um carinho novo!

    E então esse paciente amigo nosso

    Volverá para nós, nos dias de hoje,

    Toda a sua saudade religiosa,

    E invejará, talvez, piedosamente,

    Essa breve, ligeira hora de sonho,

    Que hoje os destinos deixam que vivamos...

    Autor: Múcio Leão.

    Assista este poema narrado pelo Odilon Esteves também no Youtube pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=IzW8roQ95Gw

  • Pela Luz dos Olhos Teus por Paloma Leite.

    Quando a luz dos olhos meus
    E a luz dos olhos teus
    Resolvem se encontrar,
    Ai que bom que isso é meu Deus,
    Que frio que me dá o encontro desse olhar.
    Mas se a luz dos olhos teus
    Resiste aos olhos meus só pra me provocar,
    Meu amor, juro por Deus me sinto incendiar.
    Meu amor, juro por Deus,
    Que a luz dos olhos meus já não pode esperar,
    Quero a luz dos olhos meus
    Na luz dos olhos teus sem mais lará-lará.
    Pela luz dos olhos teus
    Eu acho, meu amor, que só se pode achar
    Que a luz dos olhos meus precisa se casar.

    Autor: Vinicius de Moraes

  • Para Pintar o Retrato de Um Pássaro por Odilon Esteves.

    Primeiro pintar uma gaiola

    com a porta aberta

    pintar depois

    algo de lindo

    algo de simples

    algo de belo

    algo de útil

    para o pássaro

    depois dependurar a tela numa árvore

    num jardim

    num bosque

    ou numa floresta

    esconder-se atrás da árvore

    sem nada dizer

    sem se mexer…

    Às vezes o pássaro chega logo

    mas pode ser também que leve muitos anos

    para se decidir

    Não perder a esperança

    esperar

    esperar se preciso durante anos

    a pressa ou a lentidão da chegada do pássaro

    nada tendo a ver

    com o sucesso do quadro

    Quando o pássaro chegar

    se chegar

    guardar o mais profundo silêncio

    esperar que o pássaro entre na gaiola

    e quando já estiver lá dentro

    fechar lentamente a porta com o pincel

    depois

    apagar uma a uma todas as grades

    tendo o cuidado de não tocar numa única pena do pássaro

    Fazer depois o desenho da árvore

    escolhendo o mais belo galho

    para o pássaro

    pintar também a folhagem verde e a frescura do vento

    a poeira do sol

    e o barulho dos insetos pelo capim no calor do verão

    e depois esperar que o pássaro queira cantar

    Se o pássaro não cantar

    mau sinal

    sinal de que o quadro é ruim

    mas se cantar bom sinal

    sinal de que pode assiná-lo

    Então você arranca delicadamente

    uma das penas do pássaro

    e escreve seu nome num canto do quadro.

    Autor: Jacques Prévert.

    Assista este poema narrado pelo Odilon Esteves também no Youtube pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=6OP3j5eVD0o

  • A Catedral por Alexsandre da silva carvalho.

    Entre brumas, ao longe, surge a aurora.
    O hialino orvalho aos poucos se evapora,
    Agoniza o arrebol.
    A catedral ebúrnea do meu sonho
    Aparece, na paz do céu risonho,
    Toda branca de sol.

    E o sino canta em lúgubres responsos:
    "Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"

    O astro glorioso segue a eterna estrada.
    Uma áurea seta lhe cintila em cada
    Refulgente raio de luz.
    A catedral ebúrnea do meu sonho,
    Onde os meus olhos tão cansados ponho,
    Recebe a bênção de Jesus.

    E o sino clama em lúgubres responsos:
    "Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"

    Por entre lírios e lilases desce
    A tarde esquiva: amargurada prece
    Põe-se a lua a rezar.
    A catedral ebúrnea do meu sonho
    Aparece, na paz do céu tristonho,
    Toda branca de luar.

    E o sino chora em lúgubres responsos:
    "Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"

    O céu é todo trevas: o vento uiva.
    Do relâmpago a cabeleira ruiva
    Vem açoitar o rosto meu.
    E a catedral ebúrnea do meu sonho
    Afunda-se no caos do céu medonho
    Como um astro que já morreu.

    E o sino geme em lúgubres responsos:
    "Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"

    Autor: Alphonsus de Guimaraens

  • Das Vantagens de Ser Bobo por Odilon Esteves.

    - O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar no mundo.

    - O bobo é capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas. Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: "Estou fazendo. Estou pensando."

    - Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a ideia.

    - O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não veem.

    - Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os veem como simples pessoas humanas.

    - O bobo ganha liberdade e sabedoria para viver.

    - O bobo nunca parece ter tido vez. No entanto, muitas vezes, o bobo é um Dostoiévski.

    - Há desvantagem, obviamente. Uma boba, por exemplo, confiou na palavra de um desconhecido para a compra de um ar-refrigerado de segunda mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea onde é fresco. Vai a boba e compra o aparelho sem vê-lo sequer. Resultado: não funciona. Chamado um técnico, a opinião deste era a de que o aparelho estava tão estragado que o conserto seria caríssimo: mais valia comprar outro.

    - Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa-fé, não desconfiar, e portanto estar tranquilo. Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado.

    - O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo nem nota que venceu.

    - Aviso: não confundir bobos com burros.

    - Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera. É uma das tristezas que o bobo não prevê. César terminou dizendo a frase célebre: "Até tu, Brutus?"

    - Bobo não reclama. Em compensação, como exclama!

    - Os bobos, com suas palhaçadas, devem estar todos no céu.

    - Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz.

    - O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos.

    - Ser bobo é uma criatividade e, como toda criação, é difícil. Por isso é que os espertos não conseguem passar por bobos.

    - Os espertos ganham dos outros. Em compensação os bobos ganham vida.

    - Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie. Aliás não se importam que saibam que eles sabem.

    - Há lugares que facilitam mais as pessoas serem bobas (não confundir bobo com burro, com tolo, com fútil). Minas Gerais, por exemplo, facilita o ser bobo. Ah, quantos perdem por não nascer em Minas!

    - Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas.

    - É quase impossível evitar excesso de amor que um bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo.

    Autora: Clarice Lispector

    Assista este poema narrado pelo Odilon Esteves também no Youtube pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=esx7h5NWfl0

  • Era noite de lua na minha alma por Alexsandre da Silva Carvalho.

    Era noite de lua na minha alma

    quando surgiste pela vez primeira:

    em cada estrela, pelo azul em calma,

    florescia uma flor em de laranjeira.

    A esperança entreabria a verde palma

    ante os meus olhos, tépida, fagueira,

    como um aroma que inebria e acalma.

    Romaria de amor, doce rameira!

    E era um jardim de lírios. Suavemente

    sorriu-me a tua boca enamorada,

    como as flores que são como tu és...

    - "Em que pensas?" - dissestes, a voz tremente

    - "Senhora, penso que serás fanada como este lírio que te atira aos pés!"

    Autor: Alphonsus de Guimaraens

  • O Homem; As Viagens por Odilon Esteves.

    O homem, bicho da terra tão pequeno
    Chateia-se na terra
    Lugar de muita miséria e pouca diversão,
    Faz um foguete, uma cápsula, um módulo
    Toca para a lua
    Desce cauteloso na lua
    Pisa na lua
    Planta bandeirola na lua
    Experimenta a lua
    Coloniza a lua
    Civiliza a lua
    Humaniza a lua.

    Lua humanizada: tão igual à terra.
    O homem chateia-se na lua.
    Vamos para marte - ordena a suas máquinas.
    Elas obedecem, o homem desce em marte
    Pisa em marte
    Experimenta
    Coloniza
    Civiliza
    Humaniza marte com engenho e arte.

    Marte humanizado, que lugar quadrado.
    Vamos a outra parte?
    Claro - diz o engenho
    Sofisticado e dócil.
    Vamos a vênus.
    O homem põe o pé em vênus,
    Vê o visto - é isto?
    Idem
    Idem
    Idem.

    O homem funde a cuca se não for a júpiter
    Proclamar justiça junto com injustiça
    Repetir a fossa
    Repetir o inquieto
    Repetitório.

    Outros planetas restam para outras colônias.
    O espaço todo vira terra-a-terra.
    O homem chega ao sol ou dá uma volta
    Só para tever?
    Não-vê que ele inventa
    Roupa insiderável de viver no sol.
    Põe o pé e:
    Mas que chato é o sol, falso touro
    Espanhol domado.

    Restam outros sistemas fora
    Do solar a col-
    Onizar.
    Ao acabarem todos
    Só resta ao homem
    (estará equipado?)
    A dificílima dangerosíssima viagem
    De si a si mesmo:
    Pôr o pé no chão
    Do seu coração
    Experimentar
    Colonizar
    Civilizar
    Humanizar
    O homem
    Descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
    A perene, insuspeitada alegria
    De con-viver.

    Autor: Carlos Drummond de Andrade

    Assista este poema narrado pelo Odilon Esteves também no Youtube pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=mul0js51mWw

  • Pátria Minha por Odilon Esteves.

    A minha pátria é como se não fosse, é íntima 
    Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo 
    É minha pátria. Por isso, no exílio 
    Assistindo dormir meu filho 
    Choro de saudades de minha pátria. 

    Se me perguntarem o que é a minha pátria, direi: 
    Não sei. De fato, não sei 
    Como, por que e quando a minha pátria 
    Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água 
    Que elaboram e liquefazem a minha mágoa 
    Em longas lágrimas amargas. 

    Vontade de beijar os olhos de minha pátria 
    De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos... 
    Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias 
    De minha pátria, de minha pátria sem sapatos 
    E sem meias, pátria minha 
    Tão pobrinha! 

    Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho 
    Pátria, eu semente que nasci do vento 
    Eu que não vou e não venho, eu que permaneço 
    Em contato com a dor do tempo, eu elemento 
    De ligação entre a ação e o pensamento 
    Eu fio invisível no espaço de todo adeus 
    Eu, o sem Deus! 

    Tenho-te no entanto em mim como um gemido 
    De flor; tenho-te como um amor morrido 
    A quem se jurou; tenho-te como uma fé 
    Sem dogma; tenho-te em tudo em que não me sinto a jeito 
    Nesta sala estrangeira com lareira 
    E sem pé-direito. 

    Ah, pátria minha, lembra-me uma noite no Maine, Nova Inglaterra 
    Quando tudo passou a ser infinito e nada terra 
    E eu vi alfa e beta de Centauro escalarem o monte até o céu 
    Muitos me surpreenderam parado no campo sem luz 
    À espera de ver surgir a Cruz do Sul 
    Que eu sabia, mas amanheceu... 

    Fonte de mel, bicho triste, pátria minha 
    Amada, idolatrada, salve, salve! 
    Que mais doce esperança acorrentada 
    O não poder dizer-te: aguarda... 
    Não tardo! 

    Quero rever-te, pátria minha, e para 
    Rever-te me esqueci de tudo 
    Fui cego, estropiado, surdo, mudo 
    Vi minha humilde morte cara a cara 
    Rasguei poemas, mulheres, horizontes 
    Fiquei simples, sem fontes. 

    Pátria minha... A minha pátria não é florão, nem ostenta 
    Lábaro não; a minha pátria é desolação 
    De caminhos, a minha pátria é terra sedenta 
    E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular 
    Que bebe nuvem, come terra 
    E urina mar. 

    Mais do que a mais garrida a minha pátria tem 
    Uma quentura, um querer bem, um bem 
    Um libertas quae sera tamen 
    Que um dia traduzi num exame escrito: 
    "Liberta que serás também" 
    E repito! 

    Ponho no vento o ouvido e escuto a brisa 
    Que brinca em teus cabelos e te alisa 
    Pátria minha, e perfuma o teu chão... 
    Que vontade me vem de adormecer-me 
    Entre teus doces montes, pátria minha 
    Atento à fome em tuas entranhas 
    E ao batuque em teu coração. 

    Não te direi o nome, pátria minha 
    Teu nome é pátria amada, é patriazinha 
    Não rima com mãe gentil 
    Vives em mim como uma filha, que és 
    Uma ilha de ternura: a Ilha 
    Brasil, talvez. 

    Agora chamarei a amiga cotovia 
    E pedirei que peça ao rouxinol do dia 
    Que peça ao sabiá 
    Para levar-te presto este avigrama: 
    "Pátria minha, saudades de quem te ama… 
    Vinicius de Moraes."

    Autor: Vinicius de Moraes.

    Assista este poema narrado pelo Odilon Esteves também no Youtube pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=bttERoftXxA

  • O Futuro por Marina Alves.

    O futuro? Tem orelhas,
    mas é surdo. E é manco.
    Se arrasta, sem espanto
    mais alheio do que lúcido
    com o nosso despreparo.

    Se fosse um deus amava o humano mas, como não existe,
    o futuro tem de amansar seus ventos, marcando as peles,
    as montanhas. Sendo um gênio, não é um exército
    de cronogramas, nem de antecipações.

    Tem firmeza de flor. E é
    invisível, reconhecido
    por seus efeitos de brisa,
    furacão. Nunca adiado.
    Não tem nada a ensinar
    no entanto é um mestre
    dizem os esgrimistas,
    os observadores de saltos,
    os gatos também
    aprendem certos truques com ele.

    E se ama os despreparados
    lhe sabem tanto os que fazem
    quanto os que esperam.
    Os otimistas valem mais
    valem quanto?
    Cem bifurcações,
    sucessivas gerações
    de bem aventurados
    que topam em pedras,
    cicatrizam e correm
    bem alimentados
    com fome de mais
    alimento.

    São seus sinais
    os imprevistos, os cavalos
    os pontos cardeais
    os cinco sentidos
    e os setes buracos da cabeça.

    Autora: Júlia de Carvalho Hansen

  • Vai Procurar por Odilon Esteves.

    Vai procurar, no fundo do seu coração

    motivos para não ser feliz, que você acha.

    Você vai encontrar passados,

    pão dormido, roupa velha, mofada,

    pedaços de brinquedo,

    alegrias de papel,

    arrependimentos onipotentes,

    desejos frustrados de voltar a vida

    que é só pra frente...

    Você vai encontrar medos

    inventados pelas mães do mundo,

    violências de pais,

    castigos, promessas, vis encantamentos

    e culpas, mais culpas, máximas culpas,

    encarregadas de curvar o peito

    e afastar você de Deus.

    Você vai encontrar uma multidão

    de rostos contorcidos de inveja,

    um monte de gente falando os caminhos

    por onde você deve passar.

    Você vai encontrar conselhos, advertências,

    ameaças, sutis proteções, elogios,

    gratidões, súplicas, presentes:

    vozes de todos os donos e todos os escravos.

    E no meio de tudo isso, você só não vai encontrar, infelizmente:

    VOCÊ.

    Autor: Antônio Roberto

    Assista este poema narrado pelo Odilon Esteves também no Youtube pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=UxT9G9QRdaM

  • Cinco meninos, Cinco ratos por Babi Dias

    Às 5 horas da tarde o vento faz o que nunca tinha feito

    Deita baixo Alexandre, ele levanta-se, mas de novo é derrubado

    E outra vez, e outra vez derrubado

    Alexandre tem medo agora e já não se levanta,

    Decide deixar que a tempestade passe.

    Autor: Gonçalo M Tavares

  • Expulso Por Bom Motivo por Odilon Esteves.

    Eu cresci como filho
    De gente abastada. Meus pais
    Me colocaram um colarinho, e me educaram
    No hábito de ser servido
    E me ensinaram a dar ordens. Mas quando
    Já crescido, olhei em torno de mim
    Não me agradaram as pessoas da minha classe e me juntei
    À gente pequena.

    Assim
    Eles criaram um traidor, ensinaram-lhe
    Suas artes, e ele
    Denuncia-os ao inimigo.
    Sim, eu conto seus segredos. Fico
    Entre o povo e explico
    Como eles trapaceiam, e digo o que virá, pois
    Estou instruído em seus planos.
    O latim de seus clérigos corruptos
    Traduzo palavra por palavra em linguagem comum,

    Então
    Ele se revela uma farsa. Tomo
    A balança da sua justiça e mostro
    Os pesos falsos. E os seus informantes relatam
    Que me encontro entre os despossuídos, quando
    Tramam a revolta.
    Eles me advertiram e me tomaram
    O que ganhei com meu trabalho. E quando me corrigi
    Eles foram me caçar, mas
    Em minha casa
    Encontraram apenas escritos que expunham
    Suas tramas contra o povo. Então
    Enviaram uma ordem de prisão
    Acusando-me de ter ideias baixas, isto é
    As ideias da gente baixa.
    Aonde vou sou marcado
    Aos olhos dos possuidores.
    Mas os despossuídos
    Lêem a ordem de prisão
    E me oferecem abrigo. Você, dizem
    Foi expulso por bom motivo.

    Autor: Bertolt Brecht

    Assista este poema narrado pelo Odilon Esteves também no Youtube pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=NIzPRP49IeM

  • Quem se Defende por Odilon Esteves.

    Quem se defende porque lhe tiram o ar

    Ao lhe apertar a garganta, para este há um parágrafo

    Que diz: ele agiu em legítima defesa. Mas

    O mesmo parágrafo silencia

    Quando vocês se defendem porque lhes tiram o pão.

    E no entanto morre quem não come, e quem não come o suficiente

    Morre lentamente. Durante os anos todos em que morre

    Não lhe é permitido se defender.

    Autor: Bertolt Brecht

    Assista este poema narrado pelo Odilon Esteves também no Youtube pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=FwJKbx-7x9U

  • Iemanjá dos Cinco Nomes por Babi Dias.

    Ninguém no cais tem um nome só. Todos têm também um apelido ou abreviam o nome, ou o aumentam, ou lhe acrescentam qualquer coisa que recorde uma história, uma luta, um amor.

    Iemanjá, que é dona do cais, dos saveiros, da vida deles todos, tem cinco nomes, cinco nomes doces que todo o mudo sabe. Ela se chama Iemanjá, sempre foi chamada assim e esse é seu verdadeiro nome, de dona das águas, de senhora dos oceanos. No entanto os canoeiros amam chamá-la D. Janaína, e os pretos, que são seus filhos mais diletos, que dançam para ela e mais que todos a temem, a chamam de Inaê, com devoção, ou fazem as suas súplicas à Princesa de Aiocá, rainha dessas terras misteriosas que se escondem na linha azul que as separa das outras terras. Porém, as mulheres do cais, que são simples e valentes, Rosa Palmeirão, as mulheres da vida, as mulheres casadas, as moças que esperam noivos, a tratam de D. Maria, que Maria é um nome bonito, é mesmo o mais bonito de todos, o mais venerado, e assim o dão a Iemanjá como um presente, como se lhe levassem uma caixa de sabonetes à sua pedra no Dique. Ela é sereia, é a mãe-d’água, a dona do mar, Iemanjá, D. Janaína, D. Maria, Inaê, Princesa de Aiocá.

    Ela domina esses mares, ela adora a lua, que vem ver as noites sem nuvens, ela ama as músicas dos negros. Todo o ano se faz a festa de Iemanjá, no Dique e em Monte Serrat. Então a chamam por todos seus cinco nomes, dão-lhe todos os seus títulos, levam-lhe presentes, cantam para ela.

    Autor: Jorge Amado.

    Obra: Mar morto

  • O rei da criação, quem é por Odilon Esteves

    O joão-de-barro não faz

    casa para alugar

    o elefante é fortão

    mas não faz guerra 

    o leão não ataca 

    sem fome 

    depois o único bicho 

    inteligente é o homem

    Autor: Ulisses Tavares.

    Assista este poema narrado pelo Odilon Esteves também no Youtube pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=OUw6AagcAGc

  • Crônica da cidade do Rio de Janeiro por Babi Dias.

    No alto da noite do Rio de Janeiro, luminoso, generoso, o Cristo Redentor estende os braços. Debaixo desses braços os netos dos escravos encontram amparo.
    Uma mulher descalça olha o Cristo, lá de baixo, e apontando seu fulgor, diz, muito tristemente:
    — Daqui a pouco, já não estará mais aí. Ouvi dizer que vão tirar Ele daí.
    — Não se preocupe — tranquiliza uma vizinha —. Não se preocupe: Ele volta.
    A polícia mata muitos, e mais ainda mata a economia. Na cidade violenta soam tiros e também tambores: atabaques, ansiosos de consolo e de vingança, chamam deuses africanos. Cristo sozinho não basta.

    Autor: Eduardo Galeano