エピソード
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Rui sente com a palma da sua mão direita o asfalto do campo de futebol da escola, a rugosidade da pedra marcando o terreno da sua pele com minúsculos vales de dor. Empurra a mão contra o chão o mais que pode, quer ver até onde o solo consegue entrar no seu corpo.
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Tomás segura o seu copo de cerveja com a mão direita. Encosta-se a uma coluna na lateral do bar, a música gritando aos seus ouvidos. As luzes rasgam os rostos e os corpos dos fugitivos da noite, obrigando-os a uma dança ritmada imperturbável. Perscruta os olhares de quem passa, procurando alguma identificação, alguma correspondência ensopada em suor. Não há nada. O seu próprio rosto é indecifrável, não diz nada, e ele sabe-o porque de repente encontra-se num espelho e, olhando para si mesmo, permite-se sair do seu corpo e entrar num éter emanado pela cerveja, como se o si que olha a si mesmo fosse outro que olha outro. Percebendo-se de fora, é incapaz de se mover, remetendo-se a uma catadupa de pensamentos desconexos que culminam num refluxo de vómito.
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Falhar é fazer falta. Faz falta percorrer os caminhos outrora hipotéticos, outrora quotidianos. Faz falta introduzir conceitos alienígenas numa conversa aberrante ao sábado à noite. Ao sábado à noite bebe-se fuma-se conversa-se grita-se dança-se. Ao sábado à noite é domingo de manhã. Faz falta o espaço intermédio, límbico, entre a noite e a manhã, feito de tempo prenhe de possibilidades, antes da conclusão da expectativa, que se faz de um vazio que começa no âmago e termina no copo deixado num parapeito qualquer.
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Para a carta de hoje, decidi recuperar o tema da minha dissertação de mestrado, no qual, a partir de um projecto fotográfico, escrevi sobre o conceito de masculinidade, a sua representação na arte e, sobretudo, a forma como os homens gay olham para os seus corpos e os dos outros. Todas as pessoas são afectadas por certas expectativas ou ideais construídos socialmente e replicados culturalmente, mas a sua proeminência insistente e esmagadora na comunidade homossexual masculina parecia-me especialmente opressiva, por ser um fenómeno autogerado e reproduzido: os homens gay desejam-se de uma forma e desejam os outros dessa forma.
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A pele é um terreno ardiloso. Existe numa suavidade incomparável, salpicada de interrupções que desencaminham os dedos deslizantes. Deslizam, porque a pele desce. Inicia-se num topo, um qualquer topo, e depois desce.
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Já falamos aqui na questão da ocupação de espaços. Ocupar é usar um espaço contra a vontade do seu dono (legítimo ou não). O espaço pode ser físico ou metafórico. Ou ambos. Um espaço metafórico é o ar que respiramos, a possibilidade da existência. Ser-se num ar hostil é ocupá-lo. A própria insistência no pensamento do opressor é também uma ocupação.
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Estou sentado num chão desnivelado e desconfortável, descansando os ouvidos dos tremores apressados da música que ecoa dentro da sala negra, a conversar com o Pedro e a Francisca, calmamente, quando o cimento se ilumina. Olho para o céu e por cima de mim, por cima de nós, um intenso clarão em movimento, rápido, imenso, deixando um rasto dourado brilhante persistente na escuridão durante alguns segundos. Um tempo infinitamente minúsculo, um silêncio absoluto.
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Ocupar um espaço implica conquistá-lo. Ocupar um espaço é, por definição, fazê-lo à revelia. Não se ocupa com permissão. Ocupar não é a mesma coisa que utilizar. Utilizar um espaço é passageiro, ocupar é permanente. Uma nova ocupação implica a expulsão da anterior, ainda que o seu espectro se mantenha. É um acto político disruptivo, no verdadeiro sentido da palavra, e não no jargão tecnocrata que achata e amaina qualquer efusividade. A disrupção é um golpe profundo e concreto que gera vítimas. As vítimas serão violentadas e violentas, procurarão interromper o processo de ocupação, usarão todos os meios ao seu dispor para sufocar a revolução e manter o status quo cristalizado e cristalizante.
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A possibilidade da acção anima o espírito. É o acto que materializa o pensamento. Esse, divorciado de qualquer acção, é essencialmente individual, hermético e introspectivo. Um pensamento que não implica uma acção não tem, nessa óptica, efeito no mundo. Pensar num copo de água não cria o copo de água: é necessário mover o corpo, alcançar o copo, enchê-lo de água. Pensar num texto não cria o texto: é necessário pegar numa folha de papel e numa caneta, ou num computador, e escrevê-lo. Pensar num beijo não cria o beijo: é necessário olhar nos olhos, tocar na mão, aproximar os lábios.
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Há umas cartas atrás, falei sobre uma forma que vejo de olhos fechados. Preciso de retomar esse assunto, porque tenho de confessar que não fui totalmente honesto. Ou melhor, entretanto percebi mais umas coisas que tornam aquilo que escrevi não totalmente verídico.
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A liberdade é um conceito demasiado vasto para ser entendido com exactidão na mente humana. É tão vasta e tão invisível, que parece não existir; que é a mesma coisa que dizer que parece que, não existindo, não faz falta.
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Rui desconhecia que a sua inquietação era fruto da falta. Era incapaz de compreender o que sentia, de adormecer o espírito na calada da noite. Do desejo, conhecia-lhe tudo, menos a consciência da sua existência. O seu desejo era fulminante, atirado a tudo o que não podia possuir. Olhava Tomás, que seguia à sua frente.
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Viajava de comboio e olhei pela janela quando passava junto à praia. O sol punha-se, como se põe todos os dias, formulando o clichê das stories do Instagram, do fotógrafo amador. Pensei em sacar do telemóvel e tirar uma fotografia. Não o fiz. Amanhã há outro pôr-do-sol.
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Na carta sobre a inocência, disse que o medo do escuro é, na verdade, medo do desconhecido. Seria preciso, antes de falarmos sobre o desconhecido, percebermos o que é o desconhecido. Ou melhor, não o que ele é, mas o que significa. Se fosse o que ele é, deixava de sê-lo, certo? O que significa, portanto, o desconhecido: é isso que pretendo definir, antes de pensar sobre ele.
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Olhas para cima e é noite escura. De todo o lado ecoa o tremor do chão, os graves dos sons ritmados que surgem do palco. Luzes intermitentes e coloridas varrem as centenas, milhares, milhões de corpos que ali se espalham, movimentando-se ao mesmo tempo, na mesma cadência, num ritual de purificação da alma. Mas não é sobre os outros. É sobre ti e ele.
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Este sábado o Paulo e o Ricardo perguntaram-se se escrever estas cartas me estavam a fazer bem. A resposta curta que dei foi que sim, que ajudavam a descarregar algumas das coisas que me vão pela cabeça.
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Tomás enterrou os pés na areia enquanto fitava o mar à sua frente, o sol iniciando a sua descida vertiginosa pelo horizonte. Os grãos afiados rasgavam-lhe suavemente a pele entre os dedos, mas não o detinham. Deixava-se imergir na areia, como que uma apatia se instalasse nas pernas, um sono benevolente e confortável que lhe servia de cama. As ondas do mar despedaçavam-se em espuma de um brilho incandescente, a água aproximando-se rapidamente das suas pernas, cada vez mais submersas.
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A página em branco é um terror. Tocar uma única nota num piano, enquanto se pressiona o pedal da sustentação, para que o som se prolongue o mais possível, abafando-se lentamente na propagação que dita a sua morte. Tocar outra vez na mesma tecla, a mesma nota, o mesmo pedal, durante o mesmo tempo.
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Tem 33 anos, mas a pele seca do rosto e as duras feições dão ar de quarentas. O cabelo é preto e rapado nas laterais. Acompanha-lhe uma barba densa, escura e curta. Não é muito alto, mas os ombros ocupam espaço. O peito, volumoso, desenha-lhe a t-shirt larga, abraçando o ar que sobra por debaixo. A t-shirt é preta, pousa sobre os ombros. No verso estampam-se umas palavras quaisquer. O tecido está gasto, mas não é velho, é vintage. A t-shirt afunila-se na cinta estreita, desaparecendo para dentro das calças de ganga azul. As calças circundam o rabo redondo, hirto, e deixam-se levar pelo resto das pernas curtas, em bocas largas, desvendo botas de sola alta, escuras, de couro.
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A dúvida é uma assombração. Faz-se de pequenas interrupções do pensamento, furtos assertivos do eu contra si próprio, uma tentativa demasiadas vezes bem sucedida de plantar a vontade da desistência.
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