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  • No 25 de Abril, é tempo de recordar os heróis, e se comparação não pode haver, é certo que heróis surgem em quaisquer circunstâncias.

    Há 50 anos, houve a revolução conhecida como a “Revolução dos Cravos” em Portugal com o fim da ditadura em 1974.

    Desde então, e na história de Portugal, houve sempre heróis em várias vertentes, não apenas no campo político.

    No desporto, a história de Portugal é marcada por feitos realizados em competições de alto nível.

    No Râguebi, por exemplo, a Selecção Portuguesa participou no primeiro Mundial em 2007 em França. A coincidência foi que a segunda participação dos ‘Lobos’, alcunha da selecção de râguebi, aconteceu novamente em território francês em 2023.

    Um Mundial marcado por uma vitória, a primeira frente às Ilhas Fiji, um empate, perante a Geórgia, e duas derrotas com a Austrália e o País de Gales.

    Este percurso é contado pelo escritor e jornalista independente, Sérgio Lopes, que escreveu um primeiro livro após a participação em 2007, reeditando o feito desta vez com ‘Lobos’, que retraçou o percurso de Portugal no Mundial de 2023 em França.

    Em entrevista exclusiva à RFI, Sérgio Lopes abordou a obra e a relação directa que o râguebi português acaba por ter com França, quer no que diz respeito às participações em território francês, quer em relação aos jogadores franco-portugueses que representam a Selecção dos Lobos.

    A selecção portuguesa vai agora iniciar o percurso para alcançar o apuramento para o Mundial que vai decorrer na Austrália em 2027, talvez a oportunidade para uma terceira obra para Sérgio Lopes.

    O livro ‘Lobos’ de Sérgio Lopes está disponível nas plataformas de vendas online de livros ou directamente no site da editora primebooks.pt.

    No 25 de Abril, é tempo de recordar os heróis do passado e do presente, que passaram pelo território gaulês.

  • O livro “La Révolution Des Oeillets Au Portugal – Du pouvoir populaire au pouvoir parlementaire” ["A Revolução dos Cravos em Portugal – Do poder popular ao poder parlamentar"] de José Rebelo e Maria Inácia Rezola, é lançado, em França, na semana dos 50 anos do 25 de Abril. A obra junta meia centena de reportagens, escritas entre 1975 e 1976 por José Rebelo, então correspondente do jornal francês Le Monde em Lisboa, que são acompanhadas por uma contextualização histórica. Oiça aqui a entrevista.

    RFI: Foi para o exílio, em Paris, em 1969, e entra no jornal Le Monde em 1972. Qual foi o ambiente na redacção no dia 25 de Abril de 1974? E como é que era essa primeira página de há 50 anos?

    José Rebelo, Autor de “La Révolution Des Oeillets Au Portugal – Du pouvoir populaire au pouvoir parlementaire”: O ambiente foi extraordinário, sobretudo da parte de alguns jornalistas franceses do Le Monde que já tinham ido a Portugal. Penso no Marcel Niedergang que conhecia bem Portugal e tinha as suas fontes de informação em Portugal. Foi ele que se encarregou nesse dia de tratar a questão portuguesa. A questão portuguesa ocupou a primeira página do jornal com títulos a toda a largura, à excepção de 'Bulletin Français' que vinha sempre à esquerda, mas em todas as outras colunas o título dizia respeito à revolução, que não se sabia ainda muito bem como é que ela ia ser dirigida. Mas o que se noticiou logo no dia 25, desde a primeira edição do Le Monde, foi que havia um movimento militar em Portugal e que a queda do regime era iminente.

    Volta para Portugal quando o Le Monde decide criar o posto de correspondente permanente em Lisboa. Inicia funções em Janeiro de 1975 e conta que a partir daí viveu “o período mais exaltante” da sua vida. Porquê?

    Exactamente. E é, aliás, por isso que escolhemos este período de 1975 e 76. Durante este período, eu escrevi cerca de 240 artigos e nós escolhemos 53 que consideramos mais significativos. E porquê? Porque 1975 foi o período da explosão popular. Foi sobretudo após uma tentativa de golpe de Estado da direita, o 11 de Março. E aí as posições radicalizaram-se à esquerda.

    Foi quando começaram as ocupações de casas que tinham sido deixadas pelos proprietários, muitos dos quais fugiram para Espanha, para o Brasil. Foi nessa altura que começaram as ocupações das fábricas que passaram a ser geridas por comissões de trabalhadores. Foram ocupadas propriedades agrícolas no Alentejo, os grandes latifúndios, com a criação de unidades colectivas de produção. O Partido Comunista tinha uma posição forte junto destas comunidades, impulsionando e encorajando essas ocupações. Mas o movimento alargou-se muito, não era só o Partido Comunista.

    Houve uma multiplicidade de organizações da esquerda mais radical que participavam também neste movimento. E, sobretudo, o que é extraordinário é que havia gente que se manifestava e gente que gritava nas ruas sem pertencer a nenhum partido. Foi uma espécie de libertação das vozes e das utopias das pessoas que pensavam que conseguiam tudo realizar e que se juntavam. Juntava-se um grupo e ocupava, mesmo sem ser com um partido político a apoiar. Nessa altura fala-se muito do poder popular, o poder popular que extravasa as próprias dimensões partidárias.

    O PREC, Período Revolucionário Em Curso, foi marcado por confrontos políticos e pela rivalidade entre a legitimidade revolucionária e a legitimidade eleitoral. Mas o que é certo é que viu emergir esse tal poder popular que levou a que muitos acreditassem que essa via revolucionária popular pudesse vencer. Sentiu isso?

    Sim, eu senti. Não estava muito claro o que é que as pessoas queriam efectivamente fazer, qual era o modelo político. Quase que podíamos pensar nesse modelo mais pela negativa do que pela positiva, isto é, pensava-se democracia, sim senhor, mas não na democracia tradicional europeia. Daí que alguns grupos e até mesmo militares fossem apelidados de terceiro-mundistas porque pensavam um bocado naquele sonho do terceiro mundo. Não havia uma ideia muito clara quanto às instituições a criar, mas havia uma vontade clara que era de fazer alguma coisa de diferente. No género de economia directa, das tomadas de decisão por grupos de trabalhadores informais, etc, sem serem enquadrados politicamente. Foi extraordinário.

    Depois, há uma confrontação entre duas legitimidades: a legitimidade eleitoral, sobretudo pelo Partido Socialista, e a legitimidade revolucionária, sobretudo pelo Partido Comunista. O Partido Comunista, que invocava, para defender a sua posição como expressão da legitimidade revolucionária, a resistência contra o salazarismo e os seus heróis e os anos que passaram na cadeia e as torturas a que foram sujeitos. O Partido Socialista não tinha este passado. O Partido Socialista tinha sido criado na Alemanha pouco tempo antes.

    O que sucedeu foi que, em 25 de Abril de 1975, um ano imediatamente após a Revolução dos Cravos, houve eleições para a Assembleia Constituinte e o Partido Socialista teve um resultado absolutamente inesperado que ultrapassou os 37%. Quer dizer, as pessoas tinham um bocado a ideia que o poder estava na rua e, portanto, atribuíam ao Partido Comunista uma grande força junto do povo, que não se traduziu em termos eleitorais. Em contrapartida, o PS, que até então estava mais ou menos ausente dessas manifestações de rua, foi o PS que captou essa maior atenção eleitoral. E isso permitiu ao PS assumir-se como representante dessa legitimidade eleitoral. E deu-se a eclosão do chamado 'caso República' que teve uma grande repercussão, nomeadamente em França.

    Porque foi acompanhado pelo Edgar Morin?

    Edgar Morin e muitos outros intelectuais que discordavam das posições que o Le Monde teve em relação ao caso República. Quer dizer, houve várias posições no Le Monde, mas a posição dominante não coincidia com a opção do Partido Socialista. O Partido Socialista dizia que o caso República tinha sido uma tentativa do Partido Comunista Português - e diz isso no estrangeiro - para pôr fim à única voz socialista que havia em Portugal. Quando falavam em Portugal, os socialistas diziam que era uma tentativa do Partido Comunista para pôr fim à única voz independente que existia em Portugal. Portanto, mobilizava o discurso.

    O Le Monde tinha uma posição diferente a esse respeito, achou que aquilo foi um movimento provocado não pelo Partido Comunista porque já havia muito poucos jornalistas do Partido Comunista. Foi muito mais provocado pelos operários da gráfica, que já vinham de antes, muito antes, e que eram sobretudo republicanos antifascistas. Eles não queriam era um jornal conotado politicamente, nem com o PCP, nem com o PS. Eram republicanos antifascistas e queriam um jornal independente. E depois havia núcleos de extrema-esquerda na administração e foram sobretudo esses núcleos que se impuseram.

    O Partido Comunista já tinha retirado do jornal República praticamente todos os seus jornalistas que foram transferidos para o Diário de Notícias. Na altura, o Partido Comunista não podia denunciar o que se passava porque denunciar o que se passava era pôr-se em oposição também ao poder popular. São antigas as divergências entre o Partido Comunista e os partidos da esquerda radical ou da extrema-esquerda. Não podia apoiar a extrema-esquerda, mas também não se podia pôr em oposição porque senão perdia uma boa parte da sua base de manifestações, de ocupações, etc.

    Todo este caso vai marcar o "Verão Quente". O ímpeto revolucionário calou-se a 25 de Novembro de 1975, depois do tal braço-de-ferro marcado por ameaças de guerra civil em Portugal. Numa das reportagens publicadas no livro, o José Rebelo relata que Mário Soares acusou os comunistas e os seus alegados aliados militares de "tentativa de instauração de uma ditadura totalitária" em Portugal. Esta acusação era fundamentada? Sentiu que, de facto, havia esta ameaça de guerra civil ou foi algo instrumentalizado pelos partidos?

    Eu, pessoalmente, nunca senti que houvesse essa ameaça. Poderá ter existido, mas eu, enquanto jornalista, nunca senti esse risco de um golpe de Estado comunista. Nunca achei que o Partido Comunista tivesse força suficiente para se impor e para tomar o poder em Portugal. Mas houve quem pensasse isso e, se calhar com algum fundamento. Eu não posso negar a existência de algum fundamento nessa espécie de acusação. Eu pessoalmente, não sentia, mas poderá ter acontecido.

    Parece-me que o Partido Comunista teve mais força e foi mais apoiado pela União Soviética até à independência de Angola. Portanto, o que interessava para os partidos dos outros países que davam o seu apoio ao Partido Comunista era sobretudo a descolonização e a forma como ela se iria fazer. Quando Angola se torna independente, o suporte do Partido Comunista enfraquece. Aliás, é nessa altura também, pouco depois da independência de Angola, que se dá o 25 de Novembro, que é a confrontação entre as duas alas militares, a ala mais radical e a ala mais moderada.

    E há muitas versões do 25 de Novembro. O que é certo é que o Partido Comunista Português guardou uma atitude de relativa passividade e de muito silêncio em relação ao 25 de Novembro. Ele não se colocou ao lado da ala radical dos militares para evitar a confrontação. Havia dois sectores, sobretudo um onde ele era muito forte, que é o da área dos fuzileiros navais que eram muito controlados por um dos almirantes da esquerda radical, que é o Almirante Rosa Coutinho. E os fuzileiros nunca saíram da sua base.

    Portanto, as pessoas podem interrogar-se e interpretar das maneiras mais diferentes que se possa imaginar esta atitude relativamente passiva do Partido Comunista. Será que ele não tinha forças para intervir ou será que ele, por análise da própria relação de forças, sentia que já não tinha condições para se impor e preferia a adopção de uma medida que salvaguardasse a sua existência em Portugal? Foi o que aconteceu porque no dia seguinte ao 25 de Novembro, um dos militares, Melo Antunes, que é um dos mais importantes militares do Conselho da Revolução, veio à televisão dizer "Viva a democracia, salvámos o 25 de Abril, mas não pode haver democracia em Portugal sem o Partido Comunista Português". Portanto, foi salva a situação. Quer dizer, não houve, na sequência do 25 de Novembro, um avanço da direita que afastasse claramente o Partido Comunista Português do leque partidário nacional. O Partido Comunista Português continuou a apresentar-se a eleições e a ver os seus resultados eleitorais cada vez mais enfraquecidos.

    Por que é que as utopias revolucionárias do poder popular desaparecem depois do 25 de Novembro?

    Quer dizer, já antes aquelas clivagens entre partidos políticos e facções dentro dos militares iam acentuando um clima desagradável. As manifestações contra as condições de vida aumentaram. Por exemplo, nas vésperas de 25 de Novembro, os operários da construção civil cercaram o Parlamento. Aliás, eu fiquei lá dentro e foi do lado de dentro do Parlamento que ditei o meu artigo para o Le Monde pelo telefone da Assembleia da República!

    Já havia um certo 'clima de malaise', como dizem os franceses, mas depois, quando a situação mudou ao nível do governo, os militares que ganharam no 25 de Novembro, nomeadamente o general Eanes que os comandava, apareceram como os grandes vencedores. Isto contribuiu muito para enfraquecer o movimento que tinha bases pouco organizadas. Então, começaram a acontecer problemas às empresas auto-geridas porque elas podiam produzir enquanto tivessem tecido e também se houvesse importadores. Não havendo importadores, nem havendo onde comprar tecidos, a produção não se podia fazer, de modo que as empresas foram ocupadas mas acabou por acabar ao fim de alguns meses por haver grandes problemas de produção. O mesmo se passa noutros sectores industriais por falta de matéria-prima e falta de comercialização dos produtos que eram produzidos no interior dessas unidades produtivas. Nos campos é a mesma coisa.

    Mas há um exemplo que dá que é um exemplo de sucesso. Publica uma reportagem, em Dezembro de 1976, de unidade colectiva de produção chamada "a esquerda vencerá", em Pias, no Alentejo. Quer falar-nos sobre esta conquista colectiva derivada da Reforma Agrária?

    Essa é uma unidade colectiva de produção dirigida por um antigo operário agrícola que se chamava Manuel Carvalho. Eu acho que ele pertencia mesmo ao Partido Comunista Português, tinha uma grande actividade, um grande dinamismo e é muito bem aceite pela comunidade dos trabalhadores que formavam aquela unidade colectiva. Ele, como outros dirigentes de unidades colectivas, fizeram pequenos cursos de meses na República Democrática Alemã e vinham com cursos de aprendizagem acelerada. O que contava, essencialmente, era a capacidade que eles tinham de lidar com os militantes que formavam as unidades exclusivas de produção e beneficiavam também de algum apoio do Partido Comunista enquanto organização do Sindicato dos Trabalhadores Agrícolas.

    Quando se começou a desfazer tudo, eles começaram a ver que isto não levava a parte nenhuma. Um ano e tal depois, houve uma reforma agrária que começou a restituir terras aos pequenos proprietários e as unidades colectivas de produção começaram a desfazer-se. Houve algumas que subsistiam, nomeadamente uma chamada Torre Bela que subsistiu durante mais algum tempo. A Torre Bela era estrategicamente uma unidade de produção muito importante porque estava no limite da metade norte de Portugal, onde predominava o minifúndio, e da metade sul dominada pelo latifúndio. Essa unidade colectiva de produção era dirigida por um revolucionário de um partido político que vinha de antes do 25 de Abril, Camilo Mortágua.

    Que era da LUAR, a Liga de União e Acção Revolucionária...

    Que dirigia a LUAR, exactamente. Era muito interessante porque ele tinha uma forma de organizar aquela unidade colectiva e de os trabalhadores se reunirem todos os dias. Eles ocuparam uma grande propriedade que pertencia, se eu não me engano, aos duques de Lafões, que se foram embora. Foi a gente mais pobre da aldeia e homens com hábitos de alcoolismo e tudo isso que vieram a formar a cooperativa.

    Camilo Mortágua, todos os dias, à noite, reunia todos na sala de jantar do solar dos duques de Lafões, para dizer: "Bom, então o que é que vamos fazer amanhã?" E eu lembro de uma mulher uma vez dizer: "Ai, muitos de nós que somos católicos queríamos abrir a capela, podemos fazer uma pequena limpeza..." E ele disse: "Não. Se há muita gente, se a gente quer usar a capela, não tem que fazer uma pequena limpeza, tem que se limpar tudo integralmente porque a capela tem que estar em condições de as pessoas a utilizarem como um local de acolhimento e por isso tem que estar integralmente limpa." Foi ele mesmo que incentivou. Isto é quase um dos casos emblemáticos de uma reforma agrária que não era controlada pelo Partido Comunista, era esta esquerda utópica, mas que que revelou também um movimento popular absolutamente insuspeitável.

    O último artigo do livro é datado de 29 de Outubro de 1982 e fala sobre o fim do Conselho da Revolução, mas, sobretudo, fala das críticas dos Conselheiros da Revolução quanto ao Presidente Ramalho Eanes que reintegrou salazaristas no aparelho militar e não manifestou "o mesmo espírito de abertura" em relação a militares envolvidos no "entusiasmo revolucionário de 75 e 76". Escreve, também, que o ministro do Interior da ditadura, o general Schulz, foi declarado inocente e que a Justiça ia abrir um inquérito à forma como ele foi detido depois do 25 de Abril. A dada altura escreve "Os cravos estão decididamente murchos". Porquê?

    Bom, a dissolução do Conselho da Revolução, em 1982, é o último episódio daquele sonho revolucionário de 1975. Essas reacções vêm sobretudo do grupo dos militares mais radicais que foram derrotados no 25 de Novembro. O general Eanes representa aquele grupo de militares mais moderados e que eram contra esta ala radical. Houve receio que aquilo implicasse uma reviravolta total na relação de forças e houve desconfianças em relação ao próprio general Eanes quanto à sua orientação política e que ele fosse finalmente a expansão da direita militar.

    Ele foi o primeiro Presidente da República eleito, apoiado pelo Partido Socialista e pelos partidos que estavam à direita do Partido Socialista, o Partido Popular Democrático e o Centro Democrático Social. Depois, foi ele que proclamou, desde logo, que o momento tinha chegado de fazer regressar os militares às casernas. Portanto, fazer regressar os militares às casernas era acabar com o mito dos capitães.

    Mas as coisas alteraram-se porque, felizmente para Portugal, não houve um volte-face tão radical. O general Eanes, que em 1975 e nas eleições de 1976 aparecia como representante da direita, foi-se alterando. Mesmo fisicamente. Ele usava umas patilhas muito compridas, uns óculos de lentes grandes, tinha um ar hierático, muito rígido, sempre sério e tal. Depois, ele arranjou lentes de contacto, tirou os óculos, deixou de ter as patilhas compridas, perdeu aquele ar militar, aquele ar duro e passou a vestir-se civilmente como qualquer pessoa. Hoje o general Eanes é um dos grandes senadores ainda vivos de Portugal e é visto com respeito nos mais diversos meios, inclusivamente dentro do Partido Comunista.

    E o Otelo Saraiva de Carvalho, que também entrevistou antes das presidenciais de 1976, como é que vê a forma como a História e como Portugal o tratou? Ele que libertou Portugal da ditadura?

    Enquanto o general Eanes e outros generais como o Melo Antunes eram pessoas que tinham uma ideia mais clara quanto àquilo que importava fazer, o Otelo era - até pelo próprio nome - o homem das acções espetaculares. Ele foi fundamental no 25 de Abril, foi o ilustre estratega do 25 de Abril, mas depois tanto dizia que ia meter os sociais-democratas e a direita toda na Praça de Touros de Campo Pequeno (o que fazia com que as pessoas se lembrassem logo do Chile de Pinochet), como dizia, quando se deslocou a um país nórdico, que Portugal iria ter sucesso como um país social-democrata. Portanto, ele era uma pessoa extremamente simpática, extremamente afável, eu era muito amigo dele, mas ele perdeu um bocado o pé depois do 25 de Novembro.

    Era alguém que gostava de estar sempre na boca de cena. Estava sempre ali sobre o palco e quando perdeu este poder que tinha enquanto chefe do COPCON, cometeu alguns erros graves, como dar cobertura - não digo que ele era dirigente - a grupos de esquerda mais radicais que foram responsáveis de alguns atentados terroristas. Não creio que ele fosse dirigente desses grupos, mas de alguma forma, alguns dirigentes desses grupos reclamavam-se dele e ele olhava-os com complacência, digamos. E quando ele perdeu esse grande prestígio e passou a não ter funções importantes do ponto de vista militar, acabou por ir para o outro lado. Foi condenado a 12 ou 13 anos de prisão, acabou por fazer metade da pena porque houve muitos dirigentes políticos estrangeiros, incluindo François Mitterrand, que fizeram pressão junto do primeiro-ministro de então, o doutor Mário Soares, no sentido de ele ser liberto.

    Essa justiça também se fez em relação aos torcionários e aos antigos dirigentes do Estado Novo?

    Não, eu diria que não. Aliás, foram poucos os que foram presos e mesmo uma grande parte dos que foram presos fugiram da prisão de Alcoentre. E é muito estranho como é que, de repente, 80 e tal presos acusados de pertencerem à polícia política fogem. Há várias coisas que se cruzam. Há o pensamento dos militares que o melhor é esquecer essa história toda, não vamos começar com represálias porque nunca se sabe onde é que acabam as represálias e o melhor é deixar isto esquecido.

    Não houve essa perseguição de elementos da PIDE e houve alguns dirigentes da polícia política que depois apareceram, incluindo um que é responsável pela morte do general Humberto Delgado que foi o último candidato democrata às eleições presidenciais em Portugal e que foi assassinado em Espanha, perto da fronteira com Portugal.

    Parece que há dois pesos e duas medidas em relação ao Otelo Saraiva de Carvalho e aos antigos responsáveis da ditadura…

    Porque a situação também se modificou. A partir do 25 de Novembro, a direita portuguesa pôde aparecer livremente, enquanto que antes toda a direita se refugiava por detrás do Partido Socialista Português.

    O que é que pensa de este ano terem sido eleitos 50 deputados da extrema-direita e um vice-presidente da Assembleia ser um antigo membro do MDLP, responsável por vários atentados no pós 25 de Abril?

    Esse partido, o Chega, em poucos anos, passou de um deputado para 50 deputados, num parlamento que conta 230 deputados. É algo que mostra o mal-estar em Portugal em sectores como a educação, como a saúde, como a habitação, nas forças policiais que ganham salários de miséria. Há descontentamento e o que aconteceu é que aparece um partido populista de extrema-direita que promete tudo e mais alguma coisa.

    Quer dizer, aconteceu em Portugal, o mesmo sucedeu em França, sucedeu na Holanda, sucedeu em Espanha, sucedeu na Áustria, está a suceder na Alemanha, etc. Direi até que em Portugal sucedeu um bocado mais tarde talvez porque a democracia em Portugal vem na sequência de um acto revolucionário, contrariamente ao que sucedeu nos outros países onde a extrema-direita progrediu rapidamente e muito mais cedo. Portanto, o que sucede em Portugal, neste momento, é algo que que sucedeu também nos outros países. Mas eu direi que mais de 80% dos portugueses votaram por partidos democratas, mesmo a direita que está no poder actualmente é um partido de direita que respeita as regras da democracia, enquanto o Chega diz-se anti-regime, contra a Constituição, contra o 25 de Abril e tudo isso. E a direita há-de continuar a defender o 25 de Abril.

    Ou o 25 de Novembro...

    E o 25 de Novembro. Aliás, a direita considera que já não haveria o 25 de Abril se não tivesse havido o 25 de Novembro. Mas o que é certo é que continua a respeitar o 25 de Abril, ao passo que este partido de extrema-direita não. Ele afirma-se contra o 25 de Abril.

    Há historiadores que defendem que o 25 de Abril foi um golpe de Estado militar que o povo na rua transformou em revolução. O que foi para si a "Revolução dos Cravos"?

    Essa interpretação é também a minha. O golpe militar inicialmente teve uma dimensão sobretudo corporativista. Havia, por um lado, um grupo de militares de alta patente, coronéis, generais e tal, que consideravam que o Governo de Marcello Caetano não tinha condições para encontrar uma solução que resolvesse a situação porque a posição não era de independência das colónias, era de uma autodeterminação, de uma independência relativa, de tal forma que as colónias pudessem ter alguma autonomia política, mas todas elas no seio de uma comunidade portuguesa que continuasse a ser dirigida por Lisboa. Em Moçambique, até havia quem pugnasse por uma independência do norte de Moçambique, a norte do Zambeze. O livro que Spínola publicou, “Portugal e o Futuro”, um ano antes, já mostrava esse descontentamento e achava que já não havia condições para o Governo português poder resolver a situação africana.

    Depois, havia um grupo de militares que protestava pelas suas condições de existência, por dificuldades de imaginar a carreira, até porque o Governo português tinha sido obrigado a recrutar estudantes universitários recém-licenciados que partiam todos para as colónias com o título de tenentes e de capitães quando faziam mais do que uma missão em África. Portanto, os capitães de carreira reagiam mal ao verem os capitães que não eram profissionais, que eram universitários e que acabavam por ter as mesmas regalias que eles.

    Terceiro aspecto, esses universitários que se tornaram capitães, tenentes, etc, também têm um papel de doutrinação política, ideológica junto de muitos oficiais de carreira.

    Portanto, temos oficiais de carreira que estão dispostos a alinhar numa tentativa de golpe de Estado porque as suas carreiras não oferecem um futuro conveniente; temos oficiais de carreira que alinham também no golpe de Estado porque estão politicamente doutrinados à esquerda pelo seu contacto com os não profissionais que vêm da universidade; e depois temos tenentes, coronéis, generais que também alinham num golpe de Estado para encontrar uma solução que não seja de independência integral para as antigas colónias. Durante bastante tempo estes três grupos coexistiram com as suas contradições, mas coexistiram.

    O 25 de Abril é a expressão desta espécie de compromisso tácito entre estes três grupos e o Spínola que é nomeado Presidente da República, que dirige a Junta de Salvação Nacional e que representa estes generais que entendem que não há solução dentro do regime, mas que não querem ir muito longe. Depois há as tentativas de golpe de Estado de 28 de Setembro e de 11 de Março que são levadas a efeito por esse grupo de generais. Mas cada vez que há uma tentativa dessa natureza, a ala radical dos capitães ganha posição.

    Depois, há a rua, há o efeito popular que é enorme. As pessoas saem à rua. Eu estava em Paris nessa altura, mas fui no primeiro voo charter que aterrou no aeroporto de Lisboa. Foi uma viagem organizada em Paris. Tive a ocasião de assistir a esse movimento e ao primeiro de Maio de 1974 que foi uma coisa absolutamente extraordinária. Os militares, os cravos nas espingardas, os cravos nas bocas dos canhões, os militares todos... E depois havia o povo todo na rua. O povo saltou para cima dos blindados.

    Isto teve nestes militares, tenentes, capitães jovens, um grande impacto. Sentiram-se dignificados, de repente reconquistaram o orgulho de ser militares que tinham perdido porque estavam votados a uma guerra africana que não era popular em Portugal e que aparentemente não tinha solução e que Portugal estava a perder. Portanto, eles ganham prestígio, sentem-se heróis e ganham a dignificação. E é isto também que joga um papel muito importante para que eles cada vez assumam posições mais à esquerda e que o golpe de Estado se transforme mesmo numa revolução.

    É um exemplo desses militares a quem nós dedicamos o livro, que é o António Marques Júnior, que era tenente no 25 de Abril e foi ele que comandou as tropas que vieram de Mafra, que é o lugar onde se preparavam todos os universitários que iriam tornar-se tenentes e capitães. Ele foi um dos mais jovens militares graduados e foi o mais jovem membro do Conselho da Revolução, que era o órgão de decisão política e administrativa formado pelos militares. Ele morreu muito cedo, morreu há uma dúzia de anos e foi a ele que dedicámos o livro porque achámos que ele representava toda aquela pureza, toda aquela vontade de fazer alguma coisa de novo, toda aquela vontade de evitar retaliações, de procurar consensos e que tudo se passasse bem ou que tudo se passasse o melhor possível.

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  • Desde o início de abril, as ruas de Paris estão a encher-se de figuras portuguesas que se distinguiram nos domínios da literatura, do desporto ou da música. Uma homenagem pensada em formato de calendário do advento pelo graffiteur Glaçon, português estabelecido em França, que até ao 25 de Abril está a pintar 24 rostos portugueses um pouco por toda a capital francesa para assinalar os 50 anos da Revolução dos Cravos.

    Instalado há quatro anos em Paris, o artista urbano Glaçon, cujo nome próprio é Bryan Diegues, queria assinalar o aniversário emblemático da Revolução dos Cravos e decidiu pintar em diferentes ruas da capital rostos de portugueses que se distinguiram em diversas áreas e alguns com uma relação particular com a França, como é o caso da actriz Maria de Medeiros, o jogador Eder ou o comediante David Castello-Lopes.

    "Eu quis fazer um calanedário do advento do 25 de Abril celebrando Portugal sem ser só MFA (Movimento das Forças Armadas), sem ser só capitães, porque seria sempre mais ou menos a mesma coisa. Quis fazer uma espécie de homenagem a Portugal. Então falei da ideia de irmos de Magalhães ao Ronaldo, passando pela cultura portuguesa, é claro", explicou em entrevista à RFI.

    Assim, e olhando para a topografia de Paris e locais emblemáticos conseguiu "casar" figuras histórias portuguesas com muitos recantos da cidade.

    "As pinturas não podem ser em qualquer sítio. Por exemplo, Camões tem que ser na Avenida de Camões. Não pode ser outra coisa. Então quis sempre fazer uma pintura à beira de algo ou numa parede que fizessem sentido. Por exemplo, pintei o Éder à frente do Stade de France, onde ele marcou o golo no Europeu de Futebol. Pintei, por exemplo, José Saramago e como não há uma Rua Saramago, há em Paris aquelas livrarias verdes à beira do rio Sena e pintei-o aí", declarou.

    Auto-didacta, esta paixão de Glaçon (ou cubo de gelo em português) pelo graffiti acelerou quando o seu pai morreu e teve vontade o pintar um pouco por todo o lado. Os seus conhecimentos e tecnicas foram evoluindo e começou a ser contratado para pintar rostos em espaços privados, mantendo sempre a sua actividade de street artist.

    É neste contexto que se insere este calendário, sendo que estas pinturas são ilegais e muitas vezes efémeras, como explicou o artista.

    "Isto não é legal. Nada. E não há nenhuma tolerância. Por isso estou a arriscar multas porque ninguém sabe o que eu faço. Não avisei porque não posso fazer e se eu aviso pode demorar anos para receber permissão. Então tinha que ser antes do 25 de Abril, não podia ser em dezembro. E será que vai ficar ou não? Não sei. Isto é uma arte que pode desaparecer amanhã. Por isso eu não pintei tudo no mês de Janeiro. As pinturas vão desaparecer, então não faz sentido. Fico sempre à espera do dia de amanhã. Vou pintando hoje, publicar amanhã ou às vezes pinto hoje para publicar hoje. E assim, se alguém quiser vir ver a pintura, pode ir e ver, tirar fotografias até que a pintura um dia pronto, ficará pela história", concluiu.

  • A cantora luso-francesa Madalena Trabuco publicou recentemente dois singles; "Senhora Lua" e "Pura Energia" nas plataformas de streaming. Os dois títulos marcam uma nova etapa da carreira de Madalena Trabuco que se adaptou às mudanças da indústria da música, lembrando que sua aposta é estrear as músicas quando quiser. "Sou produtora das minhas músicas e interessa-me estar directamente ao contacto com o público", defende.

    RFI: Publicou em Fevereiro o single "Senhora Lua" nas plataformas de streaming. Como foi escrever e gravar este single?

    Este single é uma canção de amor. Numa noite de reflexão profunda, onde não tinha respostas certas em relação a uma paixão amorosa e pedi à senhora a lua e às estrelas para me ajudar, virei-me para o céu para ter um conselho divino.

    No ano passado gravou no Studio K novas canções, entre elas "Senhora Lua". Parte das suas experiências para escrever?

    Não escrevo sempre da mesma forma, mas para este projecto tive a oportunidade de escrever com pormenores o que queria na minha música. Queria uma onda mais pop, com electro, com uma música também que chama a atenção sobre o Brasil, com ritmos de vez em quando reggae. Foi essa mistura que foi criada pelo Lionel Achenza , um compositor do sul da França. Depois eu escrevi as letras deste EP. Foram seis músicas e cada uma delas vão estrear a cada mês.

    Fala das sonoridades do pop, do electro e do estilo do Brasil. Essa sonoridade do Brasil também se sente ouve no seu sotaque. É propositado?

    Sim, porque eu gosto muito da música brasileira. Escuto muitas coisas diferentes, mas gosto muito da música brasileira. Para mim foi uma influência directa. Para mim era importante também fazer essa ponte entre França, Portugal e Brasil.

    Quais é que são as suas influências.

    Para o Brasil? Vou dizer que é a Maria Bethânia, o Lenine que eu adoro, mas também música reggae do Brasil, como Natiruts ou Cidade Negra que eu gosto muito.

    Qual é o método que usa para escrever e qual é que é o tempo de gestão das suas músicas?

    Depende, vai ser muito diferente para cada projecto, mais ou menos um dia ou dois para escrever a letra. Depois temos a elaboração em colaboração com compositores e esse é um aspecto mais mais longo. Depois vamos trabalhar também no estúdio e essa parte pode ser também um, dois dias de gravação de voz e depois de trabalho de mixagem. Portanto, vamos dizer que para este álbum foi uma reflexão de um ano entre o momento em que eu escrevi, o momento onde eu entrei em estúdio [para gravar] e o momento onde eu estou aqui a falar contigo.

    Faz música há mais de 20 anos. De onde é que surgiu este desejo de música?

    Acho que tem a ver com a minha mãe que cantava muito em casa. Tinha sempre muita música, o António Variações e havia também música francesa do Joe Dassin. Os clássicos franceses e também a nossa Linda de Suza que passava muito na rádio nessa altura.

    Aqui em França?

    Sim porque eu nasci em França, sou de origem portuguesa porque os meus pais são portugueses, mas eu nasci aqui e cheguei a viver no Porto três anos, na altura de 2000 a 2003.

    Como é que olha para o seu percurso?

    Muito cativante com subidas e com descidas. Como se fosse um percurso num monte, mas vejo [o meu percurso] com muita gratidão tudo o que eu vivi, todas as experiências que eu tive e várias e ricas, passando pelas bandas de reggae que eu tive quando eu era muito mais nova no sul da França, mas também no Porto, estive numa banda que se chamava Sativa e eu era vocalista desta banda. Não havia muitos franco-portugueses a fazer reggae. Nessa altura era muito mais rock e era uma época muito mais nesse estilo de música. Foi um momento muito forte para mim começar a música com o Sativa.

    Uma proposta alternativa na altura?

    Exactamente. Mais tarde, de volta a França, tive a oportunidade de trabalhar com outros músicos. Criei "Iluminada Sabedoria", que é o primeiro primeiro EP que escrevi também numa vertente mais reggae e mais tarde tive a oportunidade de viver em Paris, escrevi "L'invitation au voyage", que é um outro álbum que me levou a trabalhar com o Warner Music em França, e tive dois temas fortes e bem divulgados na altura nas rádios.

    Os encontros fizeram com que eu tivesse a oportunidade de fazer o Festival da Canção em 2014 e tive a oportunidade de cantar para esta grande emissão. Foi também um momento de gratidão para mim de viver isso. Mais tarde tive a oportunidade de encontrar um outro músico entre Paris e Marselha no comboio. Esse músico é o criador das guitarras de Tiquetaque dessa música muito conhecida: "Bate forte o tambor" e é a parte da guitarrada era ele que tocava na altura.

    O contacto foi muito bom, a comunicação foi muito boa e portanto começámos a criar música juntos também e nessa altura estreou "Le Bateau des rêves" com outras sonoridades. Desse encontro com ele, tive a oportunidade de ir para Manaus e cantar com o Orquestra Filarmónica, no Teatro Amazonas. Encontros que nos levam muito longe e que me levou a viver coisas muito bonitas, coisas lindas, como dizia a Sara Tavares.

    O segundo single que lançou recentemente chama-se "Pura Energia". Depois do EP "Iluminada Sabedoria", "L'invitation au Voyage" em 2012, "Transição" em 2015, muitas colaborações. Está a preparar o próximo disco. Esta é uma nova etapa?

    É uma nova etapa. Comecei este ano no 2 de Fevereiro com uma música que ouvimos no início da entrevista, que é "Senhora Lua". Este tema que ouvimos agora, "Pura energia", estreou o 20 de Março, como disse um bocado e também regressar à língua portuguesa.

    Vindo a cantar muito em francês.

    Canto também em francês e escolhi a língua portuguesa exclusivamente para estas seis músicas. "Pura a energia" tem a ver com a energia pura, a energia que temos em nós, que é para mim a energia do amor, essa energia que vai unir, que vai fazer com que as pessoas fiquem juntas e fujam do medo. Muitas vezes, infelizmente, nós ficamos sempre com medo em relação à actualidade. Tivemos essa guerra com o coronavírus. Para mim, unir-se é pensar que podemos estar juntos, em vez de nos separar e criar uma distância entre populações e entre as pessoas.

    Os seus dois singles estão disponíveis em streaming. O streaming mudou a forma como a indústria audiovisual se organiza para o bem, mas também para o mal. A abertura de novos canais de transmissão e divulgação da música surgiu como um mercado de produção alternativo, iniciou. Começou a sua carreira há mais de 20 anos, em 1998, acompanhou toda esta transformação da indústria musical. Quais é que são as vantagens e desvantagens neste novo meio que é sua aposta neste momento?

    Nós somos obrigados, como músicos, de nos adaptar do que está a acontecer hoje em dia. Não temos o controlo realmente nesse movimento de música, de indústria musical. A minha aposta é estrear as músicas como eu quero. Eu sou produtora hoje das minhas músicas, estar directamente em contacto com o público e também com os médias para mim é muito importante. Acho que o que estamos a viver agora é extraordinário porque da possibilidade de independência e liberdade. Mas, paradoxalmente, temos 70.000 músicas que saem todos os dias. Uma música minha ou a música de qualquer outra cantora ou outro cantor é muito difícil de se destacar.

    Há muita concorrência?

    Muita.

    Hoje é preciso um simples toque no telefone para ouvir todas as músicas que quisermos por pouco mais de 10 euros, que é a mensalidade destas aplicações. As plataformas representam hoje 80% do consumo de música, geram 65% das receitas da indústria de música. Há cada vez menos pessoas a comprarem discos. Do que é que vivem os músicos? É suficiente estar nas plataformas? Existe um equilíbrio de receitas entre difusores, produtores, músicos?

    A difusão não leva a ganhar dinheiro para o artista, realmente não. O Snoop Dogg, que é um grande cantor americano que toda a gente, mais ou menos toda a gente conhece, anunciou há poucos dias atrás. 'Eu já tenho não sei quantos milhares de streaming, só recebi 10.000 $'. Em relação ao dinheiro, é muito pouco, não é? E as vistas que nós temos nas plataformas. Hoje em dia para se viver e se viver bem e ir ao contacto do público no palco.

    Dar concertos?

    Exactamente.

    E qual é que é o lugar da mulher nesta indústria da música?

    É uma indústria muito masculina ainda e acho que tem cada vez mais mulheres que se destacam, mas não é assim tão fácil.

    Continua a ser mais difícil do que para músicos homens?

    Eu sempre caminhei na música desde os meus 16 anos, tenho essa capacidade de me adaptar em relação à vida, em relação às épocas e também em relação aos músicos que eu encontro. Eu acho que tem muito a ver também com a capacidade de puxar para si as pessoas certas, Tudo é complicado hoje em dia, eu não acho que tenho uma profissão mais fácil do que uma outra. Também não é? E temos que insistir para guardar ou manter o nosso lugar como mulher e como mulher que tem qualquer coisa a dizer e tem mensagens para divulgar. Portanto, que seja na música ou num outro sistema ou outra profissão para mim não é sempre fácil, mas temos que ir para a frente.

    "Via da Missão" vai ser publicada no próximo dia 25 de Abril. Que mensagem é esta?

    Eu queria falar do nosso caminho de vida, onde vamos estar muito preocupados com tristeza ou dificuldades numas experiências de vida e não vamos entender o que estamos a viver nesse momento. Eu acho que a alma sabe muito bem, o que estamos a experimentar, o que estamos a viver e portanto, a nossa alma vai gostar do processo da experiência e vai gostar de viver isso tudo porque vamos sair mais, mais fortes, mesmo que seja difícil. Muitas vezes não temos essa capacidade de ver, mas é só depois de ter experimentado umas coisas difíceis ou bonitas que vamos conseguir ter uma outra visão da nossa vida.

    Essa música "Via da missão" é a via de missão que nós temos todos. Eu fui apanhada pela música, mas poderia ter sido muitas outras coisas, pode ser a missão de ser uma boa mãe, um bom pai, um bom Presidente, um bom padeiro. Para mim, cada um temos uma missão e temos que ser conscientes de cada passo par ser cada vez melhor.

    A música sai a 25 de Abril, porque?

    Nós não estaríamos aqui se não tivesse havido esta história. Somos franco-portugueses a ter essa dupla nacionalidade. Todo esse movimento de imigração passou por um momento muito difícil, que nós não queríamos mais viver. Temos essa força de olhar o passado. Portanto, 25 de Abril, para mim tem tudo a ver com a via da missão, a nossa missão de aceitar os momentos, as experiências, quando elas estão presentes.

  • O Centro Pompidou, em Paris, acolhe entre esta quarta-feira, 3 de Abril, e 9 de Setembro, uma exposição sobre as cumplicidades dos pintores Amadeo de Souza-Cardoso, Sonia e Robert Delaunay. O “triângulo artístico” começou em Paris e continuou em Portugal durante a Primeira Guerra Mundial. Helena de Freitas, uma das curadoras da exposição, destaca que este é um “ponto de viragem" no reconhecimento da obra do pintor português, oito anos depois da grande retrospectiva no Grand Palais.

    A exposição “Amadeo de Souza-Cardoso, Sonia et Robert Delaunay. Correspondances" abre ao público esta quarta-feira, 3 de Abril, e está patente até 9 de Setembro. Cerca de trinta obras mostram as “correspondências” formais, temáticas e conceptuais dos três artistas, numa escolha que resultou das “correspondências” de três curadoras - Helena de Freitas, Sophie Goetzmann e Angela Lampe – e de duas instituições – o Centro Pompidou e a Fundação Calouste Gulbenkian.

    Além de ilustrar as cumplicidades deste “triângulo artístico”, a exposição volta a colocar Amadeo de Souza-Cardoso [1887-1918] entre os nomes que fizeram a história da arte do século XX. A mostra surge oito anos depois da retrospectiva do pintor português no Grand Palais, também comissariada por Helena de Freitas, que encara esta nova exposição como “um ponto de viragem” no reconhecimento internacional de Amadeo de Souza-Cardoso. No fundo, é mais uma tentativa de “colocar o artista neste complicado puzzle da História da Arte, onde ele era uma peça que não existia”.

    A Curadora do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian fez uma visita guiada à RFI e mostrou como o pintor português esteve no centro das vanguardas do seu tempo e como o casal Delaunay se deixou influenciar pela cultura e artesanato popular portugueses.

    RFI: A exposição está num dos principais museus de arte moderna e contemporânea do mundo e acontece oito anos depois da retrospectiva no Grand Palais, também em Paris. O que representa para o reconhecimento do pintor Amadeo de Souza-Cardoso?

    Helena de Freitas, Curadora: A exposição do Grand Palais foi muito importante para que esta fosse possível. Esta tem, de facto, para mim, para nós, Fundação Gulbenkian, um significado muito especial porque está no coração de uma grande colecção francesa e internacional. Não é uma exposição à parte, ela está integrada no percurso da colecção e isso é uma das questões mais importantes porque é o patamar de reconhecimento internacional de Amadeo enquanto artista, integrado numa grande colecção internacional.

    Foi preciso esperar oito anos para voltarmos a ter Amadeo de Souza-Cardoso em Paris…

    Sim, foi preciso esperar algum tempo. Seja como for, Amadeo tem sido bastante solicitado para empréstimos um pouco por todo o lado. Portanto, há que fazer um trabalho em continuidade e esta exposição, na sequência da grande exposição de 2016, no Grand Palais, vem de alguma maneira estabelecer mais um passo importante nesse caminho que é o caminho de colocar o artista neste complicado puzzle da História da Arte, onde ele era uma peça que não existia. É um trabalho muito difícil, para o qual é preciso muita persistência e muita continuidade. Aqui traça-se um caminho. Este é um ponto muito importante. É uma espécie de ponto de viragem no reconhecimento do artista.

    Um ponto de viragem?

    Eu acho que sim, que é um ponto de viragem porque está no coração do Pompidou, durante vários meses. Digamos que é uma pequena grande exposição porque vai estar de 3 de Abril a 9 de Setembro nas salas da colecção do Pompidou. Isto é muito importante.

    O que conta a exposição?

    A exposição é a história do encontro entre o artista português Amadeo de Souza-Cardoso e Sonia Delaunay e Robert Delaunay que já se tinham encontrado em Paris durante o período em que o Amadeo viveu em Paris, de 1906 a 1914. Mas durante o período da guerra, quando Amadeo regressa a Portugal, em 1914, Sonia e Robert Delaunay, como refugiados de guerra, instalam-se em Vila do Conde, muito perto de onde o artista português viveu de 1914 até 1918, o ano da sua morte.

    Portanto, neste período, entre 1915 e 1917, eles desenvolveram projectos e contactos com alguma regularidade. Estes projectos têm um nome chamado “Corporation Nouvelle”, “Nova Corporação”. É uma ideia que nasce em Portugal e que era, de alguma maneira, uma forma de romper as fronteiras desta condição de guerra e de fechamento de fronteiras. Foi um projecto que foi pensado pelos Delaunay, onde Amadeu se inscreveu e era um projecto bastante utópico de realização de “expositions mouvantes”, de exposições itinerantes. São projectos que, de alguma maneira, deslocavam e faziam uma inversão daquilo que fazia a agora chamada Ecole de Paris, do centralismo parisiense. Era uma ideia de quebrar um pouco com essa rigidez de colocar tudo ao centro. É um projecto bastante original, muito moderno e bastante antecipador.

    E que se concretiza? Eles fazem essas exposições itinerantes?

    Infelizmente não se concretizaram. Podemos seguir toda a correspondência trocada entre estes três artistas. Estamos aqui a falar deste triângulo artístico, mas há outros artistas neste grupo. Esta exposição só se foca nos três, com as duas colecções: a colecção Gulbenkian e a Colecção Pompidou. A correspondência começou por ser muito amistosa, mas acaba por esfriar no final, quando Amadeo percebe que faz um esforço enorme para participar neste grupo - inclusive fazendo um trabalho que ele considera medíocre, que não lhe interessa, que é um trabalho com aguarelas para fazer uns álbuns de promoção para tentar encontrar meios financeiros para a realização destas exposições. Mas, no final, as exposições não se realizaram e a ideia utópica de desfazer este centralismo acaba por não se concretizar.

    Este triângulo artístico dá origem a uma exposição mais de 100 anos depois. Como é que surgiu a ideia da exposição e porquê concretizá-la agora?

    Há um passado nesta exposição. Esta exposição não teria acontecido se não tivesse havido, em 2016, no Grand Palais, uma grande exposição do artista Amadeo de Souza-Cardoso. As coisas, na verdade, acabam por pegar umas nas outras. Eu fui fazer uma conferência sobre o Amadeo, a convite da Fundação Giacometti. Nessa conferência estava uma pessoa que eu não conhecia e que me colocou uma questão pertinente: « Como é que pensa continuar a internacionalização de um artista que ainda é bastante desconhecido do público francês e internacional? » Eu disse: “Olhe que eu tenho pensado bastante no assunto e parece-me que um formato possível seria concretizar pequenos depósitos em museus internacionais e, de alguma maneira, desfazer a reunião de um peso enorme de obras de Amadeo num só museu ou em dois ou três. Portanto, tentar deslocalizar a obra e torná-la mais ampla no sentido da sua geografia, da apresentação ao público.”

    Esta senhora chama-se Angela Lampe. Acabámos por nos encontrar para falarmos do assunto. E começou então a nossa correspondência, que até está no título desta exposição. Portanto, é uma correspondência entre os três artistas e que está no catálogo - enfim, uma selecção dessa correspondência - e a correspondência das três curadoras para chegarmos a este formato, que é um formato muito leve, bastante ecológico.

    Na verdade, as obras vieram todas de Lisboa, da Fundação Gulbenkian, para o Museu Pompidou, nesta solução de três artistas de duas colecções e que aqui é apresentada como se fosse em espelho: de um lado, vemos o desenvolvimento, a base de Amadeo de Souza-Cardoso e, do outro, vemos pontuações muito importantes de Robert e de Sonia Delaunay.

    À entrada encontramos um grande painel com duas fotografias muito importantes destas correspondências. É uma fotografia de Amadeo em Manhufe, olhando-nos de alto, com o seu olhar superior - como ele gostava de estar em Portugal e em França, como sempre esteve – e, ao lado, da família Sonia e Robert Delaunay e do seu filho Charles, como ele dizia “Le Petit Peintre”. Há aqui a construção deste “élan” familiar entre os três nas duas fotografias.

    Ambas as fotografias são em Portugal, portanto?

    Ambas as fotografias são em Portugal. Eu imagino que a fotografia da família Delaunay seja na sua casa de Vila do Conde, que se chamava La Simultanée e que ainda existe com uma placa em Vila do Conde.

    Porquê “La Simultanée”?

    Porque era o movimento que eles teorizaram e desenvolveram do ponto de vista artístico, o Simultaneísmo, e portanto, chamaram a casa “La Simultanée”, com uma placa na casa que regista essa memória.

    Como é que é as cumplicidades deste triângulo artístico são articuladas no percurso da exposição?

    Tentámos, nesta exposição, sinalizar os pontos de encontro, as ressonâncias, os ecos no trabalho de cada um. Houve períodos em que o trabalho oferece muitas cumplicidades no orfismo, na descoberta da cor e da luz, mas, ao mesmo tempo, também as divergências, os pontos de desencontro e a autonomia de cada um dos artistas. Do lado do Amadeo, tentámos localizar, por exemplo, os discos órficos que ele desenvolve entre 1912 e 1913, mas que já estavam inscritos no seu programa artístico. Por exemplo, há uma pequena aguarela chamada “Clown, Cavalo, Salamandra”, que é uma das aguarelas mais icónicas de Amadeo, em que vemos já inscritos os tais círculos. Portanto, é um trabalho muito precoce, onde se percebe que é desde logo um símbolo, um sinal já do seu trabalho.

    Um trabalho que Amadeo desenvolve em múltiplas soluções mais próximas dos Delaunay, mas também mais afastadas, quando ele, na fase final, recupera esses círculos, mas objectificando-os, incluindo mesmo, de uma forma um pouco irónica, com moscas lá dentro ou transformando-os em alvos de tiro ao alvo ou em padrões de tecidos. Cada artista, na verdade, apresenta aqui uma autonomia muito forte.

    Mas vemos semelhanças, como as influências da arte decorativa e popular portuguesa, não é?

    É muito forte, sem dúvida, porque foi o período em que, de facto, eles estiveram mais próximos, quando o Roberto e Sonia Delaunay se encantaram e se maravilharam com a luz de Portugal, com todo a arte popular, e Amadeo, Eduardo Viana, enfim, há um grupo que de se formou e que iam às feiras, aos mercados, compravam as bonecas populares. Havia um maravilhamento com a arte popular. A Sonia Delaunay reconheceu a luz, os padrões, os objectos da sua Ucrânia e, portanto, há aqui um encontro entre as duas periferias.

    Quais são as obras em que mais vemos essa influência portuguesa?

    Temos aqui a pintura talvez mais reveladora desta cumplicidade - “Chanson populaire, la Russe et le Figaro”. As canções populares alimentaram a própria iconografia de Amadeo, de Robert e de Sonia Delaunay. Aquela boneca é uma boneca popular, mas também é a Sónia. Nós sabemos que ela é “a russa”.

    É um retrato de Sonia Delaunay?

    É um retrato de Sonia Delaunay evidentemente, embora não seja explícito. “Le Figaro” é o jornal que ambos liam em Vila do Conde. Depois, nestas pinturas de Amadeo [“Título desconhecido (Máquina registadora)” e “Título desconhecido (Entrada)”] também é importante perceber a introdução de publicidade, tecidos, padrões que depois encontramos em Sonia Delaunay. A ideia das marcas está aqui também presente, mas sobretudo nestas duas pinturas “Nature Morte Portugaise [1916], onde nós vemos a sugestão dos frutos, dos mercados e, sobretudo, a luz e a vibração das formas, articuladas com a luz muito presente e muito forte, os potes…

    E aqui uma mesa claramente portuguesa [‘La Verseuse’, 1916], com a melancia, com a representação dos frutos, com as cerâmicas, o pano que evidentemente brilhou nos olhos de Sonia Delaunay porque são, de facto, muito próximos de uma cultura popular também ucraniana, a que ela evidentemente era muito ligada.

    Portanto, há aqui algumas pinturas que são muito próximas. Como também este trabalho de Sonia Delaunay [“La Prose du Transsibérien et de la Petite Jehanne de France”] se encontra com “A Lenda de São Julião Hospitaleiro”, o manuscrito que Amadeo fez a partir de Flaubert, em 1913. Amadeo foi até mais antecipador nessa articulação entre texto e imagem no manuscrito de Flaubert, “A Lenda de São Julião Hospitaleiro” e esse manuscrito está aqui aberto e passamos todas as páginas em vídeo de modo a que o público possa aperceber-se da riqueza e da modernidade daquelas soluções que são muito avançadas para o seu tempo e muitíssimo precoces.

    Também nesta aguarela de Amadeo [“Canção d'Açude - Poema em Cor”], de 1913, na mesma data da prosa do Transiberiano, vemos um poema, mas um poema absolutamente articulado com as representações figurativas, em que as próprias letras, as próprias palavras já têm uma dimensão de imagem. Portanto, tudo isto é muitíssimo antecipador no seu tempo. Aqui é um grande sinal luminoso da criatividade e da inventividade do artista Amadeo de Souza-Cardoso.

    Por que é que Robert e Sonia Delaunay vão para Portugal? Quanto tempo lá ficam?

    Eles ficam durante dois anos, em períodos entrecortados, porque foi uma passagem muito atribulada. Eles são refugiados da guerra. Claramente, o Roberto teve que ser refugiado, ele era reformado, tinha problemas cardíacos e a ideia era mesmo estar refugiado. Foi, segundo eles, uma passagem de sonho pela Península Ibérica, em Vila do Conde e, mais tarde, em Espanha.

    Sonia Delaunay chegou a estar presa em Portugal, uma semana?

    Sim, é verdade. Houve uma confusão com os seus círculos. Imaginou-se que eles seriam códigos cifrados de mensagens para os alemães. Enfim, os círculos que sempre fizeram parte do seu trabalho! Portanto, foi um gigantesco equívoco e acabou por estar fechada e prisioneira. Revistaram-lhe todas as coisas. Foi um momento muito difícil para o casal e, na verdade, foi o Amadeo quem intercedeu, quem a ajudou e conseguiu resolver esse problema e esse equívoco. Sonia e Robert Delaunay ficaram-lhe muito gratos.

  • O governo francês enviou para o Conselho de Estado o projecto de lei sobre o fim de vida, abrindo “a possibilidade de solicitar assistência para morrer sob certas condições estritas”. Em entrevista à RFI, o médico de clínica geral, Paulo da Silva Moreira, mostra-se céptico quanto à possibilidade de o Senado aprovar a administração de uma substância letal, como prevê o diploma.

    O executivo francês enviou para o Conselho de Estado o projecto de lei sobre o “fim da vida”, abrindo “a possibilidade de solicitar a assistência para morrer sob certas condições estritas”.

    Este texto, detalha ainda cinco condições a cumprir simultaneamente para “aceder à morte assistida”. A pessoa deve “ter pelo menos 18 anos”; “ter nacionalidade francesa ou residir regularmente em França”; “ser capaz de expressar a vontade de forma livre e informada”; “sofrer de uma doença grave e incurável, com prognóstico vital de curto ou médio prazo”; e -por fim- “apresentar sofrimento físico ou psicológico insuportável, associado a essa condição”.

    De acordo com o texto, “a morte assistida consiste na administração de uma substância letal, realizada pela própria pessoa ou, quando a pessoa não tenha condições físicas para o fazer, pelo médico, enfermeiro ou voluntário por ela designado”.

    Em entrevista à RFI, Paulo da Silva Moreira, médico de clínica geral, mostra-se céptico quanto à possibilidade de o Senado aprovar a administração da substância letal.

    “De certeza que não vai ser aceite. O Senado não estará de acordo, eles não têm essa visão das coisas. Para mim, seria uma grande surpresa se o Senado e a Assembleia aceitassem essa lei”, referiu.

    O médico de clínica geral considera que a sociedade francesa “não evoluiu sobre esse assunto”, à imagem do que aconteceu “na Suíça e Bélgica, onde muitos franceses vão organizar a morte”.

    Este projecto prevê ainda uma cláusula de consciência para cuidadores, mas não para os estabelecimentos. Caso um profissional de saúde utilize a cláusula de consciência, deverá encaminhar a pessoa para outra equipa. Há ainda a ideia de criar uma lista de médicos voluntários dispostos a prestar assistência em caso de morte.

    Paulo da Silva Moreira reconhece que a questão da cláusula pode complicar o procedimento, sublinhando que não só os médicos que se podem opor.

    “Não são só os médicos, há também as enfermeiras e todo o pessoal de um serviço. O médico vai fazer a receita médica, a substância letal, mas a enfermeira tem direito de dizer que não vai injectar o produto na veia do doente, por considerar que o vai matar. Temos de ter consciência que as pessoas podem ter um sentimento interior, religioso ou moral que os impeça de fazê-lo”, explica.

    O projecto de lei, tornado público pelo Presidente Emmanuel Macron, deve ser apresentado ao Conselho de Ministros em Abril, antes de ser objecto de uma primeira leitura, a partir de 27 de Maio, na Assembleia Nacional.

  • Terminou no domingo a Feira Internacional de Turismo de Paris. Durante quatro dias, mais de 200 expositores abriram horizontes aos milhares de visitantes. Especialistas em viagens, transporte e alojamento não faltaram a esta 47a edição do evento. A marcar presença no certame esteve Cabo Verde, Moçambique e São Tomé e Príncipe.

    Ao microfone da RFI, Jean-Pierre Bensaïd, cônsul honorário de São Tomé e Príncipe em Marselha, sublinhou a importância de participar nestes eventos, numa altura em que o turismo no arquipélago são-tomense tem vindo a aumentar.

    O turismo de São Tomé e Príncipe está a desenvolver-se. Em 2023, recebemos 35.000 visitantes.

    Vemos que em França, por exemplo, os turistas estão à procura de destinos novos, principalmente destinos de natureza, para caminhadas, para descoberta e igualmente para encontros com a população. Isso é o mais procurado pelos turistas.

    Laura Decroix, coordenadora do turismo moçambicano em França explicou que um dos objectivos da participação é esclarecer os turistas sobre a situação de Cabo Delgado e, ao mesmo tempo, mostrar os produtos locais.

    Aqui temos óleo de coco produzido em Inhambane pela Cooperativa Boa Gente, que trabalha com as comunidades, com parceiros locais, com senhoras, sobretudo, e ajudam as nossas produtoras a ter uma fonte de rendimento.

    Também tenho fruta desidratada do Jogo, produzida na província de Inhambane. Café de Chimanimani, que é uma reserva entre Moçambique e Zimbabwe.

    O famoso café da Gorongosa. 100% dos lucros da produção do café da Gorongosa apoiam projectos de meninas no Parque Nacional de Gorongosa. Temos o mel de Gorongosa, cuja venda também apoia na formação das meninas.

    Depois, o sabão da Boa Gente e o sabão Mulher, de uma moçambicana que produz cosméticos especiais para pele negra e com produtos 100% moçambicanos.

    Questionada sobre o possível afastamento dos turistas na sequência dos ataques terroristas em Cabo Delgado, Laura Decroix é peremptória:

    Se calhar há esse medo. Mas é por isso que nós estamos aqui, para assegurar aos turistas que a situação em Cabo Delgado é localizada.

    Estamos aqui para assegurar e explicar que podem ir para Moçambique. É um país seguro, com boas potencialidades.

    Não podem visitar o Norte, mas podem ir para todo o resto de Moçambique.

    Saquina Faquir da agência de viagens moçambicana Link Fly veio à capital francesa à procura de ideias para aumentar a oferta aos moçambicanos que querem visitar Paris:

    Queremos descobrir mais sobre a França, para além dos pontos turísticos famosos que toda a gente já sabe.

    Uma coisa interessante que descobri é que existe turismo para mobilidade condicionada. Isso é impressionante. Nós nunca trabalhamos com turismo para mobilidade condicionada.

    Dalma Chirute abriu, à reportagem da RFI, as portas do Centro Internacional de Conferências Joaquim Chissano, em Maputo:

    Temos a nossa sala multiusos que tem capacidade para 1.500 pessoas. Temos a nossa plenária que é de 750 pessoas e temos as outras salas de 80 a 180 pessoas.

    Espaços que podem acolher conferências, cooperativas, religiões, cooperativas e festas privadas e espectáculos.

    Aqui “ao lado” o arquipélago cabo-verdiano. Adilson Semedo da agência de viagens Protour confirma a vontade dos franceses de conhecerem melhor Cabo-Verde.

    As pessoas perguntam o que é que podem fazer como actividade em Cabo Verde. Sabem que é um país constituído por ilhas, perguntam como fazer um circuito e visitar mais do que uma ilha. E também têm curiosidade sobre segurança e cultura. O que é que se pode ver e experienciar em Cabo Verde.

    Adilson Semedo acrescenta que a proximidade do arquipélago cabo-verdiano da Europa acaba por ser benéfica para o país, pois o turista pode “tomar um pequeno-almoço aqui em Paris e almoçar em Cabo Verde e isto, obviamente vai nos ajudar bastante na promoção do país”

    Nesta Feira Internacional do Turismo de Paris, a ilha de Santo Antão “curiosamente” foi bastante cobiçada:

    As pessoas querem fazer caminhadas. Santo Antão é magnífico para caminhadas. A maioria procura caminhadas e turismo de natureza.

    O Governo fez um investimento enorme no desenvolvimento de programas turísticos com a comunidade rural. As pessoas vão, fazem caminhadas, almoçam em casas de pessoas locais e têm uma natureza fantástica.

    Santo Antão é maravilhoso!

    A Feira Internacional do Turismo de Paris volta no próximo ano, de 13 a 16 de Março de 2025, com as cores e os paladares das tendências do turismo mundial.

  • Pela segunda vez, o município de Quelimane participa na Feira Internacional do Turismo de Paris que decorre até domingo, 17 de Março. Manuel de Araújo, presidente do município de Quelimane, sublinha que a presente nestes eventos fomenta a procura de turistas franceses e não só, além disso esta é para muitos comerciantes e artesãos locais esta é a única oportunidade de vender além-fronteiras.

    A capital moçambicana de bicicleta veio à capital francesa mostrar produtos locais, como chá ou castanha de caju, sem esquecer o artesanato.

    Manuel de Araújo, presidente do município de Quelimane, centro de Moçambique sublinha que a presente nestes eventos fomenta a procura de turistas franceses e não só, além disso esta é para muitos comerciantes e artesãos locais esta é a única oportunidade de vender além-fronteiras.

    Quelimane assume neste momento o estatuto de capital africana do desporto e o município quer o mesmo estatuto para a bicicleta. Este ano, esta participação da 47a edição da Feira Internacional do Turismo de Paris serve também para “piscar o olho” à organização dos jogos olímpicos deste verão, de forma a Quelimane ser contemplada com o material que poderá “restar” depois das olimpíadas.

  • Hamlet regressa ao teatro do Odéon pela mão da encenadora brasileira Christiane Jatahy. A encenadora habituou-nos a olhar para as fronteiras do passado e do presente, as fronteiras do cinema e da cena como elementos de transformação. "A primeira coisa que podemos fazer para escapar à possibilidade de repetir [acontecimentos] é olhar para o passado e não o apagar", defende Christiane Jatahy que propõe uma revolução sem violência através de uma "Hamlet com uma energia feminina".

    RFI: Christiane Jatahy estamos no Teatro Odéon, em Paris, onde tem em cena "Hamlet", o seu novo espectáculo. São nesta altura, 19h50, de dia 7 de Março, dentro de instantes, os actores sobem ao palco. Ainda sente um nervosismo antes de apresentar a sua criação ao público?

    Christiane Jatahy: Sim, sempre, claro. Conforme a gente vai fazendo mais vezes, vamos entendendo melhor a reacção do público e o público também vai entendendo melhor a peça e aí esse nervosismo diminui. Mas sim, é um nervosismo que eu acho saudável. Acho que para os actores [esse nervosismo acontece] todos os dias, para mim é principalmente na estreia.

    Hamlet reúne reflexões políticas, filosóficas, históricas, literárias, aborda temas que podem parecer desarticulados, desordenados. O que traz uma coerência na sua encenação é o movimento, e mais do que a vontade de mudança, a própria mudança. Adapta a quase a integralidade do texto de Shakespeare, muda o destino dos personagens e, logo no início da peça, através de um holograma, confronta os fantasmas de Shakespeare, personagens que já tem mais de 400 anos, aos personagens que cria, personagens de 2024.

    Sim, realmente Hamlet é um oceano, mas ao mesmo tempo a gente precisa de a conter e dar contorno. Para mim, era muito importante pensar essa peça a partir da perspectiva da mudança, como você disse, mas evidentemente, com a ideia de que esses personagens estão aqui hoje e, portanto, essa história está sendo revivida, mesmo que eles não tenham consciência dessa repetição. A acção, que é uma das questões do Hamlet, que é sobre ir ou não, agir ou não agir, ela se transforma em alguma coisa que já está impregnada de movimento, porque ela está impregnada de passado. Hamlet está lembrando e vivendo ao mesmo tempo e se confrontando com seus actos e se confrontando com seus actos de maneira diferente. Porque Hamlet agora tem uma energia feminina. Continua sendo uma coisa que é um pouco repetitiva nos meus trabalhos, que é sobre a questão da mudança, sobre a questão da transformação. Mas neste momento ligada à ideia de que já estamos num processo de mudança, ou seja, a mudança já está acontecendo. Por isso essa ideia da revolução, da transformação, mas ainda se perguntando sobre como é que a gente quebra as estruturas que estão introjectadas em nós mesmos para que a gente possa transformar para um outro futuro.

    Quando o apresenta e quando criou este espectáculo, sente que há dois Hamlet em cima do palco ao Hamlet shakespeariano e o seu Hamlet?

    Eu acho que tem muitos Hamlet; tem um Hamlet shakespeariano que não é mais só de Shakespeare.. é de todas as pessoas que já fizeram Hamlet, tanto nas suas encenações.

    E são tantas...

    Nossa, são 400 anos de história e tantas pessoas que já actuaram no papel do Hamlet. É o meu Hamlet como ideia, mas se transforma no Hamlet das pessoas que estão em cena, se transforma no Hamtel da Clotilde, quando ela está agindo e actuando, se transforma no Hamlet das pessoas que estão vendo e estão projectando seus Hamlet nesse Hamlet. Acho que essa ideia de que um personagem é alguma coisa é uma ideia que eu acho que ela é reducionista porque um personagem ele pode ser muitas coisas e ser outras coisas não tira, na verdade, a potência dele vir a ser de novo em outras montagens aquilo que a gente espera que ele seja.

    Fala muito do verbo ser. Esta talvez será uma nova fronteira que cria. A Christiane habituou nos às fronteiras do tempo e do espaço, aos meios que usa para comunicar entre a cena e o público, para comunicar entre os actores. Em Hamlet, cria novas fronteiras, a fronteira do interior dos personagens, a fronteira da memória, dos fantasmas e das acções. E esta fronteira entre o ser e não ser, também é ela própria uma fronteira?

    Sim, sim, realmente as fronteiras, elas são limites que me interessam transpassar. Eu penso sobre elas. Além de todas essas fronteiras que você disse, se aprofundando numa delas, a fronteira da fantasmagoria, porque ela é a fronteira do sonho. Ela é a fronteira, na verdade, do que a gente projecta do nosso inconsciente. Interessava-me uma discussão psicanalítica também sobre a obra, seguindo assim...

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    Tem uma coisa que é a fronteira que está sempre presente no meu trabalho, que é a fronteira do passado com o presente e a fronteira também do cinema e da cena, pensando essa relação agora como uma presentificação de quem não pode estar ali, porque são os fantasmas do passado.

    Nas fronteiras de que fala, em cena as personagens ocupam o espaço de um apartamento composto por um quarto, uma sala, uma cozinha e uma casa de banho. A estrutura das janelas e das portas assumem a função de fronteira entre o presente e a memória, onde circulam o consciente e inconsciente dos personagens. Junta se aí, como estava a dizer, a realidade que o público pode escolher ver e os fantasmas que pode escolher ocultar ?

    Quando pensei nessa ideia do apartamento e que depois foi desenvolvida na cenografia por mim e pelo Thomas Walgrave. A minha questão sobre o apartamento era [perceber] como é que essas pessoas, esses fantasmas porque são todos personagens que morreram de alguma forma na história da ficção, eles estão revivendo suas memórias, mas eles já morreram. Pensei nesse apartamento como um lugar onde eles convivem. É um apartamento todo envidraçado e, de alguma maneira, quando a gente quebra, como se a quarta parede que precisasse ser quebrada, a quarta parede já foi quebrada há muito tempo, mas quando a gente fisicamente derruba a quarta parede e integra o espaço do público, para mim era a ideia de construir, esse ovo, esse espaço único em que tudo interage e em nenhuma cena tem como se esconder. Eles são obrigados a conviver.

    Se na peça Claudius pode ter uma conversa com Guildenstern e Rosencrantz escondido em algum lugar, nessa peça tudo é visto assim. Por outro lado, é claro que nesse tudo é visto, também tem essas misturas dos tempos. Então, algumas vezes nem tudo o que é visto faz parte do mesmo tempo. Algumas coisas estão no tempo e outras estão em outro tempo. Isso também ressignifica essa ideia da relação em cena.

    Para concluir, que eu acho que é que é importante assim, de falar sobre o que você disse, que também quando eu abro o espaço para as laterais, eu também estou dando outros pontos de vista para o público. Além do ponto de vista da câmara e além do ponto de vista da cena, também o espectador pode decidir que ele vai olhar, incluindo o que não é a cena principal ou que ele vai escolher o foco só da cena principal. Então também tem uma questão que me interessa, que é que cada lugar do teatro te possibilita uma apreensão diferente da obra.

    Possibilita também uma interpretação sobre e para a mudança?

    Sim, claro. Porque através da direcção do nosso olhar é que a gente transforma.

    É isso que nos propõe?

    Também.

    Na peça trágica de Shakespeare, Hamlet procura a própria identidade através da vingança do pai. Por isso simula a própria loucura. Destaca-se o carácter trágico da violência vingativa e da relação com a luta pelo poder. A Christiane questiona mais profundamente essa identidade e cria um Hamlet no feminino. Esta peça, vista e interpretada no feminino, vai mudar o percurso e o decurso desta história.

    Sim, essa Hamlet ela tem ainda o seu ímpeto de vingança. Ela revive a história e ao reviver a história e revê obcecadamente a imagem do Pai que lhe impulsiona a agir, ela traz dentro dela esse impulso. Ela traz, assim como o personagem original do Shakespeare. Ela traz neste impulso a dúvida sobre ir ou não para a acção e a não compreensão, principalmente por que é que ela não consegue realizar o acto. O importante para mim é que ao se defrontar com essa violência novamente, porque é uma peça cuja violência é realizada pelos homens, ao se defrontar ela mesma com a violência que ela carrega e com a violência que ela encontra, ela não reage da mesma maneira que o Hamlet da peça original.

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    Portanto, a não reprodução da violência?

    Sim, ela não quer reproduzir a violência. E quando ela se vê sendo jogada nessa mesma violência, como por exemplo, quando ela mata Polonius, isso para ela não é alguma coisa que ela aceita nela mesma porque as estruturas que ela está lutando, de alguma maneira, que nós, como mulheres, estamos lutando hoje em dia. Acho que é muito importante falar sobre isso porque somente a transformação de um personagem, historicamente masculino, na ideia de como é que seria esse personagem se não se ele fosse uma mulher, mas se ele tivesse sido um homem e num determinado momento. Dou sempre o exemplo de Orlando da Virginia Woolf, que ele se visse como uma mulher, se essa mulher pensa sobre as questões das estruturas do patriarcado e não só fora de nós. Eu acho que isso é super importante falar nessa peça porque essa estrutura ela domina todas as estruturas do mundo. Mas também como é que essas estruturas estão introjectadas em nós mesmos e como é que essas estruturas estão introjectadas nesse personagem do Hamlet. Existe também uma questão de auto-consciência de processo de percepção, como por exemplo, como é que ela vai agir como mulher quando ela se confronta com uma situação que é super misógina na peça, que é a maneira como Hamlet trata Ofélia. Assim, ela não consegue tratar da mesma maneira.

    A escolha que Hamlet vai fazer também vai ter repercussões no destino de Ofélia, que por uma vez, não tem um destino trágico.

    Super. Acho que tem uma questão sobre o sistema e eu acho que a gente está falando sobre questões sistémicas e também familiares, porque é sobre uma família. Quando a gente quebra, quando alguma peça muda o seu comportamento nesse sistema, algum elemento, isso também é física, os outros elementos também se transformam e se libertam dos seus, dos seus padrões. A libertação da Ofélia, de alguma maneira, é decorrência de uma transformação que também está no Hamlet.

    Ouvimos duas vezes a citação "O mundo antigo está a morrer, mas o novo tarda em nascer", do filósofo italiano António Gramsci. Ele falava sobre a crise, sobre o desenlace, sobre a importância de reagir a esta frase, tantas vezes usada, sobretudo na política. As personagens partilham este espaço íntimo do apartamento do nosso tempo, com dispositivos tecnológicos com um texto de 400 anos. A estrutura mudou e o conteúdo pouco mudou. Como é que se pode escapar à repetição do passado? É apenas uma escolha?

    A primeira coisa para se escapar da possibilidade de repetir e reconhecer é olhar para o passado, não apagar o passado. O apagamento do passado é que provoca essa ideia de que alguma coisa pode se cumprir de maneira diferente, mesmo que a gente faça as mesmas coisas. É por isso que eu acho que nesse trabalho, em muitos dos meus trabalhos, quando eu estou fazendo uma relação do passado com o presente e trabalhando essas fronteiras do tempo, eu também estou falando sobre a ideia de como que ao eu reconhecer um passado que aconteceu, como é que ao me defrontar com uma situação similar, de que maneira que esse meu passado....

    Agora a peça vai começar

    Como é que eu me comporto de uma maneira diferente porque eu tenho a trajectória de reconhecimento do ponto em que isso me levou para que eu não precise repetir. Eu acho que essa é uma discussão também sobre a humanidade.

    Fala de humanidade e projecta imagens de guerra que vivemos hoje, actualmente e que também fazem parte dessa mudança de reconhecer o que aconteceu no passado para poder não reproduzir. Estamos a reproduzir erros do passado?

    A guerra é muito importante também nessa peça, apesar de que ela está sempre na volta da peça. Tudo começa por causa de uma guerra, por perder uma guerra. É uma discussão também sobre esse sistema da violência, da crueldade, da ideia de vingança, essas vinganças que se perpectuam. A guerra é o começo da peça. A guerra é o motivo, na verdade, da chegada de Fortinbras e toda essa ameaça que começa a existir. Ela está presente o tempo todo nesse entorno.

    Não existe guerras longe de guerras perto, as guerras são guerras e elas estão realmente sempre perto. A nossa inacção diante das guerras e a gente vive muito isso hoje; como agir diante dessa repetição novamente, dessa violência das guerras? Também está presente de alguma maneira na peça, nas reflexões que o próprio Hamlet já faz, mas que a gente traz agora de uma maneira que é mais direccionada a se perguntar que sentido que isso tem? Porque na peça ele se pergunta como é que Fortinbras está lutando e ele não está conseguindo lutar. Fortinbras e está lutando pelo que seu pai perdeu e ele não consegue. Aqui é o oposto, como é possível que tantas pessoas precisem morrer por uma luta que é na verdade, uma luta de uma pessoa, de uma ideia, de um desejo, na verdade, na verdade intelectual e de vingança ou de ganância.

    Hamlet diz que é preciso ser cruel para ser justo e acaba por reconhecer no fim da peça que não é, afinal, necessário ser cruel para ser justo.

    Sim, é super importante essa frase. Ela se repete de muitas maneiras, como perguntas, como afirmações, como acusações e até que finalmente tem uma tomada de consciência que é a gente realmente precisa ser cruel para ser justo?

    E o silêncio no meio disso tudo?

    O silêncio está ali. É o final da peça, o resto é silêncio. No resto, escutar esse silêncio também.

  • A França decidiu incluir a Interrupção Voluntária da Gravidez na Constituição, tornando-se no primeiro país a fazê-lo de forma explícita e ampla. O projecto de lei constitucional alterou o artigo 34.º que passa a incluir “a garantia da liberdade das mulheres de recorrer à interrupção voluntária da gravidez”. Anna Martins, directora adjunta do ministro francês do Comércio Externo, afirma que se escreveu uma nova página na história dos direitos das mulheres.

    Com esta decisão escreve-se uma nova página na história dos direitos das mulheres?

    Sim, é disso que se trata. Estou muito feliz com esta decisão, enquanto mulher e enquanto jovem. Cresci com a ideia de que uma mulher tem de dispor do seu corpo e que ninguém lhe pode, ou lhe deve, dar qualquer indicação sobre a forma que ela tem de dispor do corpo dela. E, portanto, estou evidentemente muito feliz, enquanto francesa, porque é um momento de orgulho, de grande orgulho. A França é dos primeiros países a inscrever na Constituição este direito. E agora nenhuma lei pode ir contra esse direito.

    Esta reforma introduz no artigo 34 a frase “A lei determina as condições em que a liberdade garantida à mulher de recorrer ao aborto voluntário é exercida”. Todavia, um dia depois da França se ter tornado no primeiro país no mundo a inscrever na Constituição o direito ao aborto, um centro de planeamento familiar foi vandalizado em Estrasburgo.Este acto demonstra que nem todos os franceses estão de acordo com esta decisão?

    Não, nem todos os franceses [concordam com esta decisão]. E essa era a razão pela qual era necessário inscrever esse direito na Constituição. Recentemente, muitos deputados, nomeadamente da franja da extrema-direita, tentaram inserir leis para restringir esse direito. Recordo ter visto um deputado do Rassemblement National [partido francês de extrema-direita] tentar introduzir uma lei que previa que as mulheres que recorrem ao IVG não seriam reembolsadas. Isso seria um desastre para as mulheres que não têm possibilidades financeiras para recorrer a esse tipo de procedimento. Este direito continua a ser ameaçado.

    No terreno, muitas associações denunciam o encerramento de vários centros, dificultando às mulheres ainda o direito ao aborto. Isto mostra que a luta continua?

    É preciso estar atento a todas essas situações. Não é porque a Constituição garante o direito ao aborto que ele é efectivo no terreno. França, tal como Portugal, enfrentam a problemática da desertificação médica. Depois há a questão da cláusula de consciência que permite a um médico recusar o procedimento.Não é assim tão fácil encontrar uma clínica e um médico que esteja disponível, nomeadamente na França rural.

    Organizações feministas sublinham que a inscrição do direito ao aborto na Constituição é fundamental, mas que é preciso garantir que esse direito seja efectivo. A cláusula de consciência, que está presente na lei Veil, permite aos médicos recusarem-se a praticar este acto médico por questões morais ou religiosas. Acha que também aqui é preciso estar atento a esta situação?

    É preciso ir ainda mais longe. Esse é o primeiro passo e é um passo muito importante, muito simbólico também, porque não só a extrema-direita, mas também a direita, muitas vezes motivada por orientações católicas e religiosas, se opõem ao aborto. Esta semana, ouvi na rádio um senador que contava que os filhos lhe disseram que, se votasse contra este projecto de lei de inscrever o aborto na Constituição, deixariam de falar com ele. Ou seja, também as nossas gerações estão mais motivadas visceralmente para lutar por esse direito. Mulheres e homens da minha geração.

    Mas porque é que ainda há esta ideia de que o corpo da mulher é uma praça pública?

    Se calhar, se a interrupção também existisse para os homens, talvez não estaríamos a ter esta conversa. Acho que é uma espécie de síndrome que existe há séculos e impedia a mulher de estar no mesmo patamar que o homem. Foi muito importante dar este passo para a igualdade. Dar o poder às mulheres de decidirem o que fazer dos seus corpos, é uma evolução lógica da mentalidade da nossa sociedade e, portanto, estamos no bom caminho. Não vai ser simples, mas como esse direito está inscrito na Constituição, que não podemos mais reduzi-lo, mais portas serão abertas nos próximos tempos.

    Acredita que outros países poderão seguir a França e incluir a interrupção voluntária da gravidez na Constituição?

    Mais do que inscrever na Constituição, espero que muitos países em África e na Europa criem condições para que as mulheres sem recursos possam ter acesso a este procedimento. Estou a pensar no Brasil, por exemplo, que é um dos países em que tem condições ainda muito restritivas. Por isso, acho que a inscrição na Constituição é quase o último passo. Espero que nos próximos anos, em qualquer país, uma mulher tenha acesso a esse direito que é fundamental. Uma mulher tem de ter a plena capacidade de tomar essa decisão, sem haver um homem ou uma sociedade por trás a escolher por ela.

  • Arrancou a 28 de Fevereiro, a Fashion Week de Paris. Para os estilistas, é uma oportunidade para lançar as novas colecções e mostrar o seu talento criativo. Mas a Semana da moda mostra apenas uma vertente do sector. Até em França, país muito ligado no imaginário colectivo a alta costura, o consumo de roupa é essencialmente no ramo do pronto a vestir. Caroline Kloibhofer, que trabalha hà 15 anos na aérea da produção em empresas têxteis analisa a situação de crise que conhece a França.

    No nosso magazine Vida em França, falamos de produção têxtil para o mercado francês e do consumo de roupa neste país com Caroline Kloibhofer que trabalhou na aérea da moda de luxo em casas como Louis Vuitton ou Chanel, como de pronto a vestir como Eden Park e Father’s and Sons, duas marcas francesas de roupa masculina.

    Para abordamos a questão do mercado francês, ela evoca a crise do pronto a vestir que provocou a falência de marcas francesas de pronto a vestir desde 2023. Aponta a mudança de hábitos depois da crise do COVID com mais compras na internet e menos nas lojas físicas.

    Não é por ser um producto chinês que é de péssima qualidade. Isto é mais complexo.

    A produção em França é um fenómeno muito limitado jáque existem poucas fábricas e que os consumidores não estão dispostos a pagar preços elevados. Além disso, certas técnicas só são dominadas por países como o Japão, principalmente quando se trata de têxteis técnicos.

    O mercado da roupa de segunda mão està a desenvolver-se, reduzindo cada vez mais o pedido de roupa nova.

    Segundo o Instituto Francês da Moda,… nos últimos 10 anos,… as marcas de pronto a vestir de média gama sofreram uma quebra média no valor das vendas de 5% por ano… O mercado está cada vez mais sob pressão da inflação (há quem renuncie em comprar roupa) e também da maior preocupação com o meio ambiental.

  • Neste magazine "Vida em França", destacamos o descontentamento agrícola, a escassos dias da Feira internacional da agricultura de Paris.

    Os nossos dois interlocutores são José Rodrigues, viticultor na região de Bordéus, sudoeste da França, e Carlos Vinhas Pereira, professor de economia na capital francesa.

    A Feira internacional da Agricultura de Paris vai abrir a 24 de Fevereiro. Apesar de terem cessado a maioria dos bloqueios de autoestradas e de administrações, as tensões entre os agricultores e o governo permanecem ainda muito fortes. O evento muito popular, além do sector profissional, promete ter uma tonalidade muito política.

    O chefe do governo francês, Gabriel Attal, anunciou na quarta-deira uma série de medidas para apaziguar a ira do mundo rural mas José Rodrigues, viticultor em Bordéus, não acha que seja suficiente.

    A concurrência com Argentina, Chile, até com Espanha não permite aos agricultores franceses viverem das suas produções. Não vivemos no mesmo mundo. (José Rodrigues, viticultor)

    Carlos Vinhas Pereira, professor de economia em Paris, reconhece que os agricultores precisam de garantias da parte do governo francês e também da parte dos actores económicos

    Uma solução seria pedir um esforço aos distribuidores para pagarem aos agricultores um preço correcto e pedir aos consumidores que comprem produtos nacionais. (Carlos Vinhas Pereira, professor de economia)

  • O arménio Missak Manouchian, símbolo da Resistência na Segunda Guerra Mundial, vai dar entrada no Panteão Nacional francês, esta terça-feira, 21 de Fevereiro. O anúncio foi feito pelo Presidente da Repúlica, Emmanuel Macron. Missak refugiou-se em França depois de ter sobrevivido ao genocídio arménio e ingressou na resistência comunista francesa em 1943, onde foi um activo membro.

    Missak Manouchian foi assassinado aqui em França a 21 de Fevereiro de 1944 pelos alemães, juntamente com mais de 20 pessoas, depois de terem sido acusados de terrorismo. Entre os anos de 1940 a 1944, França estava ocupada pelas tropas alemãs e ficou submetida ao regime de Adolf Hitler. França decidiu, por isso, homenagear Manouchian pelo seu papel na libertação do país.

    Em comunicado, o Palácio do Eliseu salienta que Manouchian "encarna os valores universais da liberdade, igualdade e fraternidade" e Emmanuel Macron saúdou mesmo a "bravura" e o "heroísmo silencioso" deste resistente arménio.

    No Panteão Nacional, estão sepultadas as mais célebres personalidades que se destacaram do ponto de vista histórico e cultural no país. Missak Manuchian é o nono membro da Resistência a entrar no Panteão e dará entrada ao lado da esposa, Mélinéé Manuchian.

    Em entrevista à RFI, Tigrane Yegavian, investigador arménio e professor de Relações Internacionais na Universidade de Schiller em Paris, começou por relembrar quem foi este casal.

    RFI: Quem foi este casal?

    Foi um casal excepcional em todos os termos. Falamos de vítimas do genocídio. Missak foi um homem que conseguiu escapar graças à ajuda de uma família curda e aderiu ao partido comunista francês, onde era um activo membro. Porém, não tinha nacionalidade francesa, mas era muito envolvido nas acções deste partido. Era um grande poeta também e a sua esposa, era, de facto, também uma grande militante do partido comunista francês. Era também uma figura feminista que participou na vida cultural da comunidade arménia em França, mas que também levou a cabo ajuda à arménia soviética porque havia um país que não era independente, mas que fazia parte da União Soviética que era a Arménia e lutavam por este ideal: ajudar o povo arménio e lutar contra a ocupação alemã porque consideravam que defender a França era como defender a Arménia porque estamos a falar de duas nações irmãs que partilham muitos pontos comuns.

    RFI: Estamos aqui a falar, portanto, de um legado de resistência que deixa este casal?

    Tigrane Yegavian: Um legado de resistência, uma história de amor também. Antes de ser morto, Missak escreveu uma carta magnífica à esposa dizendo que não tinha ódio para com os alemães, que tinha a certeza da vitória e pediu à esposa para casar, para ter um filho, mas a Mélinée nunca voltou a casar. Foi para a Arménia soviética nos anos 50 e depois voltou para França. Teve uma espécie de desilusão perante o regime soviético e morreu nos anos 80. Estamos a falar de um casal muito simbólico, que encarna a integração da comunidade arménia em França, uma comunidade perfeitamente integrada no tecido nacional francês, mas que também nunca esqueceu as raízes e a cultura arménia.

    Pode contextualizar-nos como morreu Missak Machian?

    Tigrane Yegavian: Missak Machian era o chefe de um bando/de uma organização clandestina de migrantes, judeus, arménios, que foram traídos por um antigo membro da organização. Foi no Mont-Valérien [perto de Paris] onde foi executado em 1944, alguns meses antes da libertação de Paris.

    Não são muitos os estrangeiros a entrar no Panteão Nacional Francês. Estas duas figuras são os primeiros resistentes e comunistas estrangeiros a juntar-se ao templo das grandes figuras da República que estão patentes no Panteão. Na sua óptica, qual é a importância deste reconhecimento, numa altura em que foi aprovada aqui em França a Lei da Imigração, que restringe os direitos dos imigrantes no país?

    Tigrane Yegavian: Este evento tem um forte valor simbólico porque é, de facto, o reconhecer o papel desta imigração comunista que defendeu França, que defendeu a pátria, que versou sangue pela pátria, mas eu vejo isto também como uma mensagem para a comunidade arménia de França porque França precisa também de símbolos para reconhecer o combate dos arménios no país, para a integração, mas também para a defesa dos valores. Estamos a viver num contexto muito difícil na Arménia, que perdeu agora a guerra contra o Azerbeijão, tem problemas de ocupação de partes do seu território. Portanto, temos aqui França que quer também testemunhar o seu apoio, a sua solidariedade ao povo arménio. Penso que esta é a primeira mensagem que devemos ter em conta. A segunda é o facto de reconhecer o papel da imigração, que faz parte da política de comunicação do Presidente Emmanuel Macron que, agora, tem também um governo mais à direita. Não nos podemos esquecer que isto é também uma mensagem que tem o seu valor simbólico.

    É, portanto, um anúncio importante para a Arménia. Pergunto-lhe como é que esta notícia está a ser recebida no país? Já falou com algumas pessoas sobre este assunto? Quais é que estão a ser as reacções?

    Tigrane Yegavian: As reacções são muito positivas porque Missak Manuchian é uma personagem muito conhecida no mundo arménio como poeta, como membro do partido comunista francês. É um orgulho nacional, um grande orgulho para a nação arménia inteira, para o país também. Há uma história muito bonita também de amizade entre a família do Manuchian e um grande cantor francês, cujos pais participaram também na resistência e faziam parte da mesma rede do casal Manuchian, então estamos a falar de uma história de amizade, de resitência, de heroísmo e uma história de fraternidade de armas entre franceses e arménios. As reacções são muito positivas, mas agora a pergunta que temos de colocar é que França vai continuar a apoiar, a garantir a segurança da Arménia que, de facto, está ameaçada com o Azerbeijão, que nunca renunciou a recomeçar a guerra contra o seu próprio território.

    Como é que França pode intervir nesta questão?

    Tigrane Yegavian: França desempenha um papel importantíssimo desde 2020 e mais recentemente 2023com a limpeza étnica dos arménio do Arssar. França está a desempenhar um papel diplomático [na sequência do Conselho de Segurança das Nações Unidas] e também um papel militar mais discreto, mas França começou a entregar armamento defensivo para proteger o território arménio porque há uma real ameaça no sul, que é uma região muito vulnerável onde o Azerbeijão tem projectos para ter uma ligação terrestre directa e isto de facto constitui um grande perigo para a segurança e o futuro da Arménia, que é um país fraco, um país que não tem muita população, que é um país isolado, a Arménia espera muito de França. Há uma grande esperança, uma fantasia acerca de França, mas, de facto, França está a tornar-se não só um amigo, como também um aliado da Arménia, que, de facto, é algo bastante excepcional porque temos de ter em conta que a Arménia faz parte ainda de um sistema de aliança militar com a Rússia, embora a Rússia se tenha afastado muito da Arménia estes últimos anos.

  • O Presidente francês promulgou na sexta-feira, 26 de Janeiro, a nova lei da imigração. Mais de um terço do documento final foi censurado pelo Conselho Constitucional, acusado pela direita de ter cometido um “golpe de Estado de direito”. Isabel Borges Voltine, activista franco-cabo-verdiana, diz-se “chocada” com o facto de o Governo ter proposto uma lei “típica da ideologia de extrema-direita” e acusa o executivo de fomentar “a preferência nacional”.

    O Presidente francês, Emmanuel Macron, promulgou na sexta-feira da semana passada, 26 de Janeiro, a nova lei da imigração. Mais de um terço do documento final acabou por ser amplamente censurado pelo Conselho Constitucional, acusado pela direita de ter cometido um “golpe de Estado de direito”.

    O texto foi publicado em Diário da República, jornal oficial, neste sábado, 27 de Janeiro. As primeiras indicações para a sua aplicação já tinham sido apresentadas aos diferentes governadores civis franceses. Emmanuel Macron promulgou a lei a partir de Nova Deli, na Índia, onde se encontrava em deslocação oficial.

    A lei contempla 86 artigos, 35 deles foram completa ou parcialmente retocados pelo conselho de sábios. Fazem parte das medidas chumbadas novos dispositivos de acesso de estrangeiros a ajudas sociais, novas regras para o reagrupamento familiar ou a instauração de medidas para o regresso de estudantes estrangeiros.

    Sobre a nova lei, o ministro do Interior, Gerald Darmanin sublinhou que “nunca a França teve um texto que prevê tantos meios para expulsar delinquentes e tantas exigências para a integração de estrangeiros”.

    A direita e a extrema-direita, favoráveis ao documento e indignadas com a posição do Conselho Constitucional, pedem uma reforma da Constituição para responder aos actuais desafios migratórios. Opção já colocada de lado pelo executivo.

    Por outro lado, estes cortes do Conselho Constitucional foram recebidos com “satisfação” pela esquerda, que condena fortemente a nova lei da imigração.

    Isabel Borges Voltine, activista franco-cabo-verdiana, muito implicada na vida política francesa, diz-se “chocada” com o facto de um Governo “que não é de extrema-direita” ter proposto uma lei “que é a típica das ideologias de extrema-direita”. Acusa o executivo de estar a fomentar “a preferência nacional” numa lei que coloca à margem a divisa francesa de “igualdade e fraternidade”.

    Questionada sobre se um maior controlo da imigração, não poderia levar a uma melhor integração da mesma, Isabel Borges Voltine é peremptória: “Não estou a ver uma melhor integração da imigração quando se vai dificultar o dia-a-dia das pessoas” e defende uma maior fiscalização dos apoios sociais atribuídos, esclarecendo de forma cabal a “amálgama que criaram na cabeça das pessoas, dizendo que todo o estrangeiro vem para França aproveitar-se do sistema.”

    Eu tenho um passaporte francês, mas acha que, na rua, sou identificada como francesa?

    Sinto-me cidadã francesa, porque participo, contribuo, tive filhos para continuar a perpetuar e pago os meus impostos. Mas qual é o respeito que tenho?

    Sou Imigrante. Escolhi vir para cá. Mas os meus filhos que nasceram cá, que mantêm esta cor de pele que os faz diferente, quando é que se vão sentir integrados?

    Se a integração é pelo trabalho, eu sou um exemplo máximo: trabalho pago os meus impostos, contribuo. Em que momento é que vou ter o carimbo de integrada?

    De alguma forma aliviada com a posição do Conselho Constitucional, a activista franco-cabo-verdiana fala de um sentimento agridoce, na medida em que, neste momento, não há garantias políticas de que, no futuro, medidas mais severas não possam vir a ser adoptadas.

  • Em França, os agricultores estão em protesto há já uma semana. Os profissionais do sector denunciam as dificuldades económicas que enfrentam diariamente, bem como o peso da burocracia a nível nacional e europeu.

    Os agricultores queixam-se dos baixos salários, do aumento do preço dos combustíveis e dos custos de produção Os profissionais deploram ainda o aumento dos impostos, o peso da burocracia no país ou a pressão no que diz respeito às normas ecológicas europeias.

    É preciso não esquecer que os camponeses estão em protesto há vários meses, mas endureceram o tom na última semana com o bloqueio de várias auto-estradas do sul do país e já ameaçaram estender o movimento a outros pontos de França, nomeadamente, a Paris. Isto acontece a poucos meses das eleições europeias.

    Em entrevista à RFI, José Rodrigues, que possui três propriedades vitivinícolas em Bordéus, no sul do país, começou por explicar-nos quais são as principais reivindicações dos agricultores.

    "As principais reivindicações dos agricultores são a incapacidade de viver com o ordenado de 800 euros de média por mês, para 70% dos agricultores em França e ainda o aumento das matérias-primas, a burocracia europeia, mas também a burocracia francesa que vem colocar ainda mais pressão", começou por explicar o viticultor, em entrevista à RFI.

    Recorde-se que estes protestos já tiveram lugar noutros países europeus, caso da Roménia, Países Baixos, Polónia ou até mesmo da Alemanha. Para esta quinta-feira, está marcada uma reunião em Bruxelas para debater este tema, onde participam organizações do sector, bem como peritos e ong’s.

  • O novo primeiro-ministro francês, Gabriel Attal, chega ao Palácio de Matignon numa altura em que o Presidente Emmanuel Macron prepara as eleições europeias em Junho e também as presidenciais de 2027. Dois desafios preocupantes face a uma extrema-direita que continua a ganhar popularidade.

    Emmanuel Macron nomeou esta semana um novo primeiro-ministro e a escolha recaiu sobre Gabriel Attal, até agora ministro da Educação, e um fiel da primeira hora do Presidente da República.

    Aos 34 anos, a nomeação deste jovem de famílias abastadas que frequentou algumas das melhores escolas francesas e entrou muito novo para gabinetes ministeriais, está a marcar a história da França, algo que o próprio mencionou no seu discurso de posse.

    "O Presidente mais jovem da História, nomeia o primeiro-ministro mais jovem da história", lembrou Gabriel Attal.

    Esta é uma nomeação que ocorre em ano de eleições europeias, onde a extrema-direita pode ter muito bons resultados, e já projectando as eleições presidenciais de 2027, onde Attal pode vir a ser o candidato apoiado por Emmanuel Macron. Uma nomeação que não surpreendeu e que vem colmatar os falhanços da sua predecessora, como relatou em entrevista à RFI a historiadora Adeline Afonso.

    "A escolha do Gabriel Attal também foi pensada nas próximas eleições europeias e talvez a longo prazo, pensar no gabriel Attal como um possível sucessor, já que Emmanuel Macron não se pode candidatar de novo", indicou a historiadora.

    No entanto, para chegar a esse combate daqui a três anos, terá de levar a cabo concessões à esquerda e à direita, já que o partido do Presidente não tem maioria absoluta na Assembleia Nacional, e tentar manter intacta a sua popularidade, que actualmente é das mais elevadas entre todas as figuras políticas em França.

    "Sobre os desafios, são os mesmo que teve a anterior primeira-ministra, tentar governar não tendo maioria absoluta e isso é sempre muito complicado porque para fazer passar leis, Elisabeth Borne não teve outra hipótese senão accionar o 49.3 da Constituição que é muito impopular e mostra uma forma de governar bastante agressivo. E isso é um desafio para Attal porque a sua popularidade pode cair e vai afecta-lo queira chegar ao Palácio do Eliseu", concluiu a historiadora.

  • A galeria Nathalie Obadia apresenta a exposição "Silhouettes Parfaites" do artista plástico guineense, Nú Barreto, até dia 13 de Janeiro, em Paris. As obras em papel reciclado servem de suporte à circulação das sombras de seres imperfeitos, que se movem de forma desconcertante para ultrapassar os limites impostos pela tela.

    "Silhouettes Parfaites é uma forma de evitar dizer silhuetas imperfeitas", começa por explicar Nú Barreto. Neste novo trabalho, o artista guineense desenha sombras de pessoas imperfeitas que "saem de uma espécie de introspecção" para um lugar desconhecido. As personagens flutuam e tentam libertar-se, saindo das telas, como se estivessem a cair ou a sair do suporte de criação. "Estas silhuetas são sombras das pessoas imperfeitas, que se movem de um lado para outro. São fantasmas que lutam para encontrar um espaço neste mundo", explica o artista. "Onde estou?", questiona a personagem de um quadro, "desconfortável", responde outra.

    Nú Barreto celebrou em 2023 cinco ano de colaboração com a galeria Nathalie Obadia. Para assinalar a data, o artista plástico decidiu apresentar ao público uma nova proposta artística, convocando novos elementos como a masculinidade, através de bananas, o poder, através de coroas invertidas, a transmissão através de lápis ou canetas - numa intenção lúdica, irónica e perturbadora.

    No entanto, Nu Barreto continua a questionar, como o fez nas suas obras anteriores, "a fragilidade do conforto, a fragilidade do poder, utilizando cadeiras com dois ou três pés, sem nunca estarem completas", conta.

    Nas mais recentes criações, a técnica de colagem está mais presente do que nunca. Nú Barreto usa cartões, papel reciclado, sacos de plástico nos quais espalha sombras de corpos, cabeças e animais. O artista tenta "Recuperar, reciclar e restituir" materiais para "questionar os novos hábitos de consumo", introduzindo elementos que, aparentemente, não teriam valor, dando-lhes "uma nova vida".

    A tela de madeira com mais de três metros de comprimento "Transmissions" faz parte da série Estados Desunidos de África (2009). O artista guineense usa a bandeira americana com cores diferentes, [as cores] usadas na maioria das bandeiras dos países africanos: vermelho, amarelo e verde. Nesta obra, Nú Barreto usa 54 estrelas que representam os 54 países do continente africano. Cada estrela forma uma espécie de molécula composta por 54 canetas e lapis que se tocam uns aos outros. "Transmissions" carrega 2916 canetas e lápis, lembrando que "a transmissão é um acto frágil e que na arte essa transmissão leva ainda mais tempo. É importante salvaguardá-la porque vivemos graças a essa transmissão", concluiu.

  • O Parlamento francês aprovou, esta terça-feira à noite, a nova Lei de Imigração, um documento controverso que visa restringir as regras da imigração no país. O texto foi aprovado por 349 votos a favor e 186 contra. Pedro Viana, membro do conselho de redacção da revista "Migrations et Société", sublinha que a” França não existiria sem imigração” e denuncia que “mais uma vez” a questão da imigração está a ser utilizada para “camuflar os problemas estruturais da sociedade francesa.”

    A nova lei da imigração divide a classe política, é criticada pela esquerda e bem recebida pela extrema-direita. Dentro da maioria presidencial é fonte de desconforto, que já levou ao pedido de demissão do ministro da Saúde.

    Antes de a lei ser aprovada na Assembleia Nacional, o Journal du Dimanche, publicou, neste domingo 17 de Dezembro de 2023, uma sondagem onde a maioria dos inquiridos era a favor de um endurecimento da política nacional contra a imigração ilegal.73% dos franceses consideram que a segurança da França deve prevalecer sobre os direitos individuais dos estrangeiros em matéria de expulsão. 67% defendem que o direito nacional tenha primazia em relação ao direito europeu, pelo menos em questão de migração. A posição varia consoante a orientação politica, 79% dos franceses de direita são a favor, contra 45% de esquerda.

    Segundo o Journal du Dimanche, 60% dos franceses pensam que é necessário colocar um término na aquisição automática da nacionalidade francesa para as crianças filhas de pais estrangeiros.

    71% dos franceses estima que a estada ilegal de um estrangeiro em França deve ser considerada como um delito e ser punida legalmente, com coimais e até pena de prisão.

    65% dos franceses querem travar a imigração económica para França

    Dar prioridade à segurança da França e dos franceses em detrimento dos direitos individuais dos estrangeiros em matéria de expulsão é outra vontade 73% dos franceses.

    Pedro Viana, membro do conselho de redacção da revista "Migrations et Société", sublinha que, “mais uma vez” a imigração para “camuflar os problemas estruturais da sociedade francesa.”

    Em matéria de ‘bandeiras’, tenho a impressão que o Presidente da República francesa [Emmanuel Macron] está afogado debaixo de bandeiras. Passa o tempo a levantar bandeiras.

    O que aconteceu depois das últimas eleições legislativas é que o governo perdeu a maioria absoluta no parlamento. Então, tenta fazer um exercício de equilibrismo para passar certas coisas com o apoio da direita parlamentar e da extrema-direita parlamentar, e, por outro lado, alguns adornos tenta fazer passar com a maioria da esquerda.

    O Governo, cada vez mais à direita, lançou-se nesta aventura de uma lei completamente desnecessária.

    Tudo o que poderia ser visto como positivo no projecto de lei - como foi apresentado pelo Governo e que já foi altamente transformado e direitizado - poderia ser feito com a legislação existente.

    Mas, uma vez mais, a questão da imigração serve de pretexto para desviar a atenção dos problemas fundamentais da sociedade, que não tem nada a ver com a imigração. São problemas estruturais da sociedade francesa.

  • Em França, a controversa lei sobre a imigração deveria ter começado a ser debatida na Assembleia Nacional, esta segunda-feira, mas os deputados acabaram por votar uma moção de rejeição, proposta pelos ecologistas. A moção foi aprovada com 270 votos a favor e 265 contra e a lei acabou por não ser discutida nem votada na Câmara Baixa do Parlamento.

    Depois desta derrota, o ministro do Interior, Gerald Darmanin, apresentou a demissão, mas o Presidente francês, Emmanuel Macron, acabou por não a aceitar e o governante permaneceu no cargo.

    Para tentar sair deste impasse, o governo decidiu convocar uma Comissão Mista Paritária, composta por 7 deputados e 7 senadores, que vão voltar a analisar o texto, no início da próxima semana, mas, desta vez, uma versão mais dura, adoptada anteriormente pelo Senado, sendo que a Câmara Alta do Parlamento é composta por uma maioria à direita.

    Em entrevista à RFI, Rafael Lucas, professor catedrático, na cidade de Bordéus, no sul do país, começa por falar-nos sobre o posicionamento da extrema-esquerda, que acabou por se unir à extrema-direita para fazer "cair" esta lei, defendendo que a oposição se uniu contra o governo de Elisabeth Borne.

    O nosso entrevistado falou também sobre as soluções futuras de que dispõe o governo para tentar chegar a um consenso sobre o texto.

  • França sofreu, no sábado passado, um novo atentado terrorista, a escassos metros da Torre Eiffel, levado a cabo por um franco-iraniano, de 26 anos, conhecido pelas autoridades como alguém radicalizado. Um turista alemão perdeu a vida e duas pessoas ficaram feridas, numa ataque perpetrado com uma faca e um martelo. O terrorista alegou que queria "vingar a morte dos muçulmanos um pouco por todo o mundo" e referiu "não aguentar mais que os muçulmanos morressem, no Afeganistão e na Palestina".

    Em entrevista à RFI, Hugo Costeira, Presidente da ONG Observatório de Segurança Interna, em Portugal, começa por defender que não estamos perante as repercussões da guerra entre Israel e o Hamas, recordando que a radicalização de inspiração islâmica é um problema que fustiga a Europa há já muito tempo.

    "O conflito na Palestina, que actualmente opõe Israel ao Hamas, não é nada que tenha vindo desencadear algo que para nós seja novo. A questão da radicalização de inspiração islâmica radical, já existe na Europa há muito tempo, há tempo a mais e é realmente fruto de vários factores. É muito diferente, entre, por exemplo, França e Portugal", começou por referir o nosso entrevistado.

    Apesar disso, Hugo Costeira considera que o conflito é "utilizado" pelos terroristas como forma de justificar ainda mais os ataques que são levados a cabo contra outras civilizações.

    "A inspiração islâmica radical, que potencia este tipo de terrorismo, de alguma forma, socorre-se do evento que está a acontecer na zona de Gaza, para tentar justificar ainda mais, chamar-lhe-emos uma intifada contra as outras civilizações que não as civilizações que professem uma fé islâmica radical", salientou ainda.

    Hugo Costeira, que também é investigador do Instituto contra Terrorismo da Universidade de Reichman, em Israel, falou ainda sobre o que pode ser feito na Europa para evitar que situações semelhantes se repitam, um trabalho que começa com "a monitorização das redes sociais".

    Ouça aqui a entrevista na íntegra: